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As Seis Paramitas


Cada paramita é ensinada sob sete tópicos: reflexão sobre defeitos e virtudes, definição, classificação, características de cada classificação, incremento, perfeição e resultado.


A perfeição da generosidade

A primeira paramita é a generosidade. A razão pela qual a generosidade é ensinada em primeiro lugar é que os bodhisatvas precisam agir de uma forma que seja benéfica para os outros seres. Para realmente poderem ajudar outros seres, precisam primeiro estabelecer com eles uma conexão correta; precisam ter um relacionamento positivo com as pessoas. O que faz um relacionamento positivo é ajudar os seres por diferentes meios, ajudá-los temporariamente oferecendo o que necessitam, oferecendo proteção contra o medo e oferecendo ensinamentos. Estes diferentes tipos de oferendas, ou diferentes maneiras de praticar a generosidade, levarão satisfação e felicidade aos outros seres. Uma vez que este sentimento esteja estabelecido é possível guiá-los gradualmente no caminho do dharma e finalmente conduzi-los à obtenção do resultado final, que é a budeidade. Este é o motivo pelo qual a generosidade é ensinada em primeiro lugar, porque ela fornece os meios para realizar essa aspiração.


I. Reflexão sobre as virtudes e defeitos. O primeiro tópico é sobre os benefícios que surgem da prática da generosidade e os defeitos que resultam de não praticá-la.

O fundamento de qualquer prática é o desejo de praticar. Como já mencionamos, o budismo não é apenas uma maneira de pensar ou de falar. Temos que realmente praticar, e esta é a razão para estarmos estudando as seis paramitas. Para praticar a generosidade é necessário existir o desejo de fazer esta prática, não basta ouvir falar que é preciso praticar. Mesmo se nosso lama nos disser isso, não quer dizer que seremos capazes de praticar. O que, então, poderá nos ajudar? É importante sabermos que se praticarmos a generosidade muitas qualidades surgirão e que, se não o fizermos, surgirão muitos defeitos. Esse é o resultado da natureza da generosidade: se formos generosos isso trará muitos benefícios e, se não formos, muitos defeitos surgirão como resultado. O Buddha mostrou que a falta de generosidade torna difícil a compreensão e o progresso no caminho e impede a realização da budeidade. O próprio Buddha viu as desvantagens de não praticar a generosidade e aconselhou seus discípulos a praticá-la para evitar esses equívocos. Quando deu essa orientação, não estava sendo autoritário, mas sim indicando que se eles praticassem a generosidade muitos benefícios e qualidades apareceriam como resultado, e se não praticassem a generosidade muitas desvantagens e defeitos resultariam. Nós também temos que reconhecer as vantagens e qualidades da prática da generosidade e os defeitos e desvantagens de não praticá-la. Quando tivermos consciência disso será fácil praticar a generosidade e vamos querer praticá-la espontaneamente por sabermos o quão útil e benéfica ela é. Vamos ser inspirados por estes motivos. Esta é a razão para aprendermos agora sobre as qualidades que resultam de praticar a generosidade e os defeitos que resultam de não praticá-la.

Quais são os benefícios que advêm da generosidade? O objeto da generosidade é explicado sob dois aspectos. Se considerarmos o objeto como sendo um animal, veremos que os animais sofrem de muitas diferentes maneiras, devido à fome, sede, doença, medo e veremos que podemos ajudá-los de muitas diferentes formas, protegendo-os de seus sofrimentos.

Se considerarmos o objeto da prática como sendo os seres humanos, veremos que eles são sujeitos a quatro tipos de sofrimento típicos da existência humana. São eles o sofrimento do nascimento, velhice, doença e morte. Além destes, existem dois problemas tipicamente humanos, o problema da atividade excessiva e o da frustração. Atividade excessiva é a sensação que estamos constantemente apressados, que nunca existe tempo suficiente para nada e que estamos sempre ocupados desde a manhã até a noite. É a constante sensação de que não há tempo, que cada momento do dia, cada hora e cada minuto está tomado e que nunca há um momento para relaxar. É a constante sensação de termos que nos apressar e de que nada que queremos fazer consegue ser terminado. Nunca achamos tempo para terminar o que queremos fazer e isso causa preocupações e dificuldades consideráveis. Esse problema de atividade excessiva é devido ao fato de não termos controle sobre nossas vidas. Não podemos dizer: "Espere aí, não quero morrer agora porque não terminei tudo o que comecei". Quando a morte chegar, ela vai acontecer independentemente de termos ou não terminado. Este é o motivo de termos o constante sentimento de pressa e a sensação de que a vida está passando, que não podemos segurá-la. Sentimos que não podemos terminar nada. Este é um dos problemas da condição humana.

Outro problema é o da frustração. Mesmo nos apressando tanto, mesmo trabalhando muito arduamente, fisica, verbal e mentalmente, nunca realmente sentimos que as coisas estão completas, existe sempre uma sensação de insatisfação, de que não é o suficiente, que não está certo, que é pequeno demais ou não é suficientemente bom. Existe sempre a frustração em nossas mentes de que as coisas não são exatamente o que deveriam ser.

Esses dois fatores, atividade excessiva e frustração, são problemas globais da humanidade, independentemente de riqueza e pobreza. As pessoas têm que conviver com eles. Como podem, então, serem eliminados esses dois aspectos das dificuldades humanas, causas de tanta angústia? O melhor dos remédios para estes dois problemas, ao menos no curto prazo, é a generosidade. A generosidade é o que pode realmente aliviar este tipo de sofrimento.

A hiperatividade resulta de sensação de que estamos perdendo alguma coisa. Então, se doarmos alguma coisa para diminuir a sensação de carência e frustração, isso automaticamente aliviará o sofrimento da hiperatividade.

Se fizermos algo por alguém, pelo menos por um tempo essa pessoa vai se sentir aliviada do sentimento de constante frustração e carência; a causa de tais sentimentos será removida por atos de generosidade e a mente daquele indivíduo será aliviada e vai se sentir feliz. Essa pessoa vai então se beneficiar de nosso generoso presente. É por isso que é importante praticar a generosidade, que é muito benéfica por reduzir a dor e angústia de outra pessoa.

Também para nós, nosso sentimento de querer ajudar outros seres não ficará apenas na teoria, mas, em vez disso, se tornará uma realidade, por estarmos realmente fazendo alguma coisa para ajudar os outros. Pelo mesmo motivo, estaremos acumulando muita virtude que nos levará a budeidade muito rapidamente. Quando chegarmos lá, poderemos, é claro, ajudar muito mais os seres, e fazê-lo de uma maneira muito mais grandiosa. Por isso o Buddha ressaltou nos sutras as grandes vantagens, as grandes qualidade que advêm da prática de generosidade.

No "Sutra pedido pelo chefe de família Drakshulchen" (em tibetano Chimdag Drakshul Chengyi Zhupai Do) o Buddha enumerou as qualidades resultantes de praticar a generosidade e os defeitos advindos de não ser generoso. O Buddha disse: "Isso quer dizer que o que doamos é verdadeiramente nosso porque sempre vai trazer bons resultados para os outros e para nós, enquanto o que conservamos não vai ser desfrutado por ninguém além de nós; quando morrermos vamos ter que deixar para trás nossas coisas e elas então não serão benéficas para ninguém. Quando conservamos alguma coisa, mantemos também conosco todas as preocupações de ter que cuidar dela; vamos nos preocupar porque ela pode ser roubada, desperdiçada ou apodrecer. Se doarmos alguma coisa, então não teremos nada para nos preocupar; não precisaremos nos preocupar que ela possa ser roubada, desperdiçada ou apodrecer. Se conservarmos algo para nós mesmos por muito apego ou por avareza, isso só vai nos ser útil por algum tempo, já que algum dia vai ter que passar para outras mãos.

Se doarmos alguma coisa, isso não beneficia só a pessoa que recebe nosso presente, mas também a nós, porque a o resultado da generosidade vai nos levar para muito próximo da budeidade. Enquanto mantivermos as coisas para nós mesmos por apego, ela provavelmente vai ser causa de orgulho, ciúme, raiva, todas as formas de sentimentos negativos. Manter as coisas para nós significa, então, cair na negatividade em vez de ganhar alguma coisa. "Se doarmos nossas coisas", como disse o Buddha, "você realmente as possui porque o benefício do presente se torna inexaurível, enquanto se você as mantém, o benefício do objeto se torna pequeno e se esgota rapidamente". Foi assim que o Buddha mostrou o benefício da generosidade e os defeitos da avareza.


II. Definição. A definição da generosidade é: O puro desejo de doar alguma coisa a alguém para ajudá-lo; esse desejo não é maculado por nenhum apego àquilo que você está doando. A generosidade não depende do tamanho ou qualidade daquilo que você está doando; só depende da pura intenção de realmente ajudar a pessoa que recebe seu presente, sem apego.


III. Classificação. Existem três diferentes aspectos da generosidade: doar riquezas (a doação de coisas materiais), doar destemor (o presente de proteger os outros) e doar o dharma, o presente dos ensinamentos.


IV. Características de cada classificação


A. Doar riquezas. A respeito da generosidade material, normalmente é ensinado que devemos ser generosos e doar coisas para os outros. Entretanto, nem todas as formas de tais atos de generosidade são benéficas, porque existem presentes impuros que não devemos dar. Devemos praticar apenas as formas puras de generosidade.


1. Doações impuras. Existem quatro tipos de presentes materiais impuros. Eles podem ser impuros devido a quatro fatores: quando a intenção é impura, quando o próprio presente é impuro, quando aquele que recebe é impuro e quando a forma de doar é impura. Devemos, então, só levar em consideração a generosidade que não seja contaminada por nenhum desses quatro fatores de impureza.

a) Intenção impura.

O primeiro fator de impureza é quando a intenção não é correta, quando doamos alguma coisa com a intenção de prejudicar. Você poderia, por exemplo, com tal intenção pensar "Se eu der isso para essa pessoa ela vai se meter em muita confusão e vai ter muitos problemas". Podemos doar alguma coisa com a intenção de que quem a recebe acabe na prisão, seja banido de um país ou mesmo que seja morto. Essas intenções são todas muito impuras e negativas. Não devemos doar com tais intenções.

b) Objeto impuro.

O segundo fator de impureza é quando o próprio presente é impróprio. Isso quer dizer, por exemplo, dar veneno, para ferir alguém. Pode ser fogo, que se deseja que queime alguém, ou armas, que servem para matar pessoas. O próprio presente é então impróprio e vai tornar o ato de generosidade impróprio e impuro. Pode, no entanto, haver excessões. Podemos dar algo que possa parecer impróprio mas seja, na realidade, útil. Por exemplo, se uma cobra venenosa tiver mordido o dedo de alguém e a única forma de salvá-lo seja amputar o seu dedo. Nesse caso a ação se torna generosa porque salvamos a vida dessa pessoa.

c) Recebedor impuro

O terceiro aspecto de impureza da generosidade diz respeito a quem recebe o presente. Existem dois tipos de destinatários impróprios de presentes. O primeiro é alguém que pede alguma coisa para você com a intenção de prejudicá-lo. Eles sabem que pedindo esse objeto para você, vão lhe causar muitos problemas. Como a motivação do recebedor é impura, não é adequado dar o presente para ele. O segundo tipo de pessoa é alguém que seja perturbado mentalmente. Se você tem alguém perturbado mentalmente que lhe pede para que você ofereça sua vida cortando sua cabeça, isso seria muito impróprio porque essa pessoa está apenas louca, e esse ato não traria benefício para ninguém.

d) Método impuro

O quarto fator de impureza da generosidade diz respeito à maneira pela qual você dá. Isso quer dizer que você doa alguma coisa para alguém, mas na verdade o que realmente gostaria de fazer seria bater naquela pessoa, ou se você doa alguma coisa de uma maneira áspera e pouco amistosa. Doar dessa forma vai fazer com que quem recebe se sinta infeliz e triste e vai causar angústia em sua mente, o que não vai ajudá-lo de forma alguma. Isso torna a generosidade impura.

Estes são os quatro aspectos que se deve evitar e abandonar para que a generosidade seja pura.


2. Doação pura. A doação pura tem três aspectos: objeto puro (aquilo que é apropriado), recebedor puro (nosso guia espiritual, as três jóias e qualquer necessitado) e método puro (doar com uma motivação pura, com devoção, com respeito, sem preconceito e aquilo que é necessário).


B. Doar destemor. O segundo tipo de doação, o do destemor, significa dar proteção. É ainda melhor do que o primeiro tipo de generosidade porque envolve proteger alguém do medo, tal como o medo de animais selvagens, doença, fogo, água ou qualquer tipo de medo. Se diz que essa forma de generosidade é como o presente da vida, porque você protege a vida de alguém daquilo que lhe causa o medo.


C. Doar o dharma. O terceiro tipo de doação é o presente do dharma. Esta é a mais elevada forma de doação, por trazer benefícios muito grandiosos. Novamente, existem quatro aspectos que definem um presente apropriado do dharma: o recebedor, a motivação do doador, o próprio dharma e o método pelo qual são dados os ensinamentos do dharma.

a) O recebedor

Vamos considerar aquele que recebe o presente. Para quem devemos doar o dharma? Não para pessoas que não estiverem interessadas nele, porque isso não vai trazer benefícios para elas, devido a sua falta de interesse. Ele deve ser doado a pessoas que estão interessadas nele e que têm alguma fé e alguma medida de apreciação pelo dharma.

b) A motivação

No que diz respeito à motivação do doador, não devemos doar o dharma para outras pessoas com a intenção de nos tornarmos famosos ou bem sucedidos, ou visando qualquer tipo de ganho pessoal. Isso deve ser feito por uma motivação pura e exclusivamente boa. O dharma deve ser doado quando temos a convicção de que quem o recebe quer aprender sobre ele, que ele quer aprender como praticar, quer saber como se livrar do sofrimento e quer saber como conseguir a felicidade. Para ajudá-lo a saber tudo isso, fazemos o presente do dharma. Basicamente isso quer dizer que só devemos doar o dharma pelo desejo de ajudar e apenas com uma motivação compassiva.

c) O próprio dharma

O que devemos ensinar quando se aplica a generosidade espiritual? Não devemos ensinar algo que tenhamos inventado por nós próprios, com um pensamento como: "Bem, eu sou bem esperto, tenho bom entendimento e realização na minha meditação, então eu posso inventar um bom ensinamento". É claro que isso é errado porque não devemos criar nossas próprias idéias sobre os ensinamentos. Mesmo se formos muito inteligentes, mesmo se tivermos muito entendimento e realização obtida através da meditação, ainda assim será possível cometermos enganos. Devemos, por isso, usar apenas os ensinamentos do Buddha, porque são os únicos que não podem levar a enganos, que são impecáveis. São as imaculadas palavras do Buddha que devem ser usadas pela generosidade espiritual. Podemos usar também os ensinamentos dos seres muito elevados que escreveram os shastras, os ensinamentos que elucidam o que o Buddha disse. De qualquer forma, não devemos inventar nossos próprios ensinamentos.

Quando usamos aquilo que o Buddha ensinou, não devemos alterar suas instruções. Não devemos tentar usar os ensinamentos para satisfazer nossas próprias necessidades. Devemos ensinar o que está contido neles. Além disso, os ensinamentos não devem se limitar a palavras. Outras pessoas devem chegar a serem capazes de praticar através de nossas explicações. Não devemos ficar no nível da teoria e especulação, mas colocar as explicações em termos práticos para que realmente possamos mostrar aquilo que pode ajudar; o que pode ser útil diretamente, na prática. Se falarmos sobre o que deve ser eliminado, devemos ser capazes de explicar como aquilo pode ser eliminado. Se falarmos sobre o que temos que realizar, devemos ser capazes de mostrar a maneira de realizá-lo. Só então o que ensinamos se tornará diretamente útil.

d) O método de apresentar os ensinamentos do dharma

A respeito da forma pela qual é feito o presente do dharma, quando falamos sobre o dharma isso não deve ser feito através de uma conversa comum; não estaremos falando sobre o dharma para bater um papo ou impressionar os outros com nosso conhecimento. Devemos falar sobre o dharma para ajudar a outra pessoa a encontrar e reconhecer a maneira de praticar o dharma. A maneira pela qual devemos explicar o dharma é para beneficiar a outra pessoa de forma prática. Não devemos ensinar de maneira a impressionar os outros ou para fazer uma exibição de nossos conhecimentos. Devemos, sim, ensinar com a intenção de ajudar a outra pessoa para que ela, ao nos ouvir, experimente um estímulo benéfico em sua mente, para que sinta devoção pelo dharma devido ao que falamos, para que possa progredir em sua prática de meditação, possa sentir mais compaixão, que possa realmente voltar sua mente para a iluminação, desenvolva sua diligência, e assim por diante. O que isso realmente quer dizer é que nossas explicações sobre o dharma devem ser benéficos para os outros, e não destinados a impressioná-los.


V. Incremento. A partir do ponto em que começamos a praticar até o ponto em que realizarmos o objetivo final da iluminação, precisamos cultivar a generosidade. Isso quer dizer que temos que gerar uma grande quantidade de generosidade; temos que praticar a generosidade em larga escala. Aqui recebemos os meios de aumentar nossa generosidade e fazê-la se tornar muito maior. Isso pode ser feito por três diferentes maneiras: através de jnana (sabedoria primordial) através de prajna (sabedoria) e através da dedicação.

Em primeiro lugar é ensinado que através do poder da pura sabedoria ou da mais elevada forma de inteligência podemos tornar excelente a nossa generosidade. Isso diz respeito à ausência dos três pensamentos quando doamos algo: a idéia de que alguém está dando alguma coisa, de que alguém recebe o presente e que existe a ação de presentear. Quando não introduzimos essa tríplice divisão, que tem origem em pensamentos e conceitos, a generosidade se torna extremamente pura. Esse tipo de generosidade traz os melhores frutos e os mais elevados resultados. É por isso que é ensinado que através do poder da mais pura sabedoria a generosidade se torna excelente.

A segunda forma de incrementar a generosidade é através do poder de prajna, do poder do entendimento espiritual. É ensinado que através do poder do entendimento, a generosidade é levada a se expandir. Esse entendimento especial vai nos ajudar a expandir a generosidade sob três formas: no princípio vai nos ajudar através da motivação correta, que é levar todos os seres a budeidade; no momento da doação vai nos ajudar a não ficarmos apegados ao objeto do presente e no final vai nos ajudar a não termos qualquer esperança ou expectativa de resultado por nossa ação generosa. Quando estiverem presentes esse três elementos positivos nossa ação não será mais uma ação ordinária; ela será especial por estar acompanhada por um entendimento profundo. Isso vai tornar nossa generosidade muito vasta; vai incrementar nossa acumulação de virtude. Isso se dá através do profundo entendimento.

A terceira forma de incrementar a generosidade é através da dedicação. A dedicação significa que quando estamos praticando a generosidade não fazemos isso em nosso próprio benefício, mas com a intenção de beneficiar todos os outros seres através de nossas ações. Esses pensamentos de dedicação vão ser também algo que incrementa tremendamente os resultados da generosidade.


VI. Perfeição. A generosidade pode ser tornada pura de duas maneiras: através da prática de generosidade ao mesmo tempo em que se tem o entendimento da vacuidade e de ter compaixão. Quando a compaixão e esse entendimento permeiam a generosidade, ela é, então, uma generosidade pura.


VII. Resultado. A generosidade é essencialmente a qualidade do não-apego; é a capacidade de doar coisas. Isso mostra que não estamos muito envolvidos com as coisas; não estamos muito apegados às coisas mundanas. Quer dizer que, como não temos grande apego às coisas, podemos realmente praticar o dharma com grande energia; nossa prática vai ser muito poderosa por não estarmos apegados às coisas materiais. Se nossa prática for muito poderosa e forte, através da completa dedicação, isso quer dizer que, como consequência, vamos ser capazes de ajudar os outros tremendamente.

Um dos resultado temporários que vêm da generosidade é de nos tornarmos muito afluentes. Teremos muitas coisas materiais em nossa vida por termos sido capazes de doar muito. Quando tivermos todas essas coisas boas em nossa vida, vamos ser capazes de usá-las para beneficiar muitos outros seres. Existem, então, muitos grandes benefícios que vêm da generosidade.

Talvez muitos de nós encarem a generosidade como algo que tem a ver com objetos, com aquilo que doamos. Mas não é, na realidade, dessa forma. É muito mais uma questão de mentalidade do que uma questão do objeto da doação. Se a generosidade ficasse apenas relacionada a objetos externos, isso implicaria em que somente alguém que fosse muito rico poderia doar muito e que alguém que fosse muito pobre não teria como praticar a generosidade e não poderia, por isso, acumular virtude. Se a generosidade ficasse reduzida ao poder, somente alguém com uma posição elevada na sociedade seria capaz de dar proteção, enquanto alguém que não tivesse uma posição elevada não teria como fazê-lo. Também implicaria em que somente alguém muito inteligente seria capaz de doar o dharma e alguém com menos inteligência não poderia fazer esse tipo de doação. Entretanto não é assim, porque a generosidade não tem a ver com as coisas externas, ela é interior. É uma questão de intenção, um estado mental. Depende daquilo que pensamos. É o estado mental de realmente querer ajudar os outros através daquilo que doamos. É o sentimento de realmente querermos ajudar os outros através de dar algo, de qualquer maneira que for possível. Mesmo se a oportunidade não surgir, isso não importa, porque o estado mental é que é o importante. É o sentimento de estar pronto para fazer qualquer coisa que pudermos para ajudar alguém através de dar para ele aquilo de que ele necessita. Então, se temos ou não a oportunidade de dar não é o importante. O importante é nossa pura motivação.

Desde que estamos falando de um estado mental, vemos que a generosidade deveria ser um estado mental positivo. Sinta, então, esse estado mental, repouse nesse estado mental por alguns momentos.

Como já foi explicado, um dos principais tópicos do Ornamento da Preciosa Liberação é a bodichitta, a mente que anseia pela liberação. A bodichitta é, basicamente, uma espécie muito pura de motivação, mas não é apenas isso. Ela não permanece sendo apenas uma motivação, mas tem que ser colocada em prática. A forma de praticar a a muito pura motivação é praticar as seis paramitas. Nós agora cobrimos a primeira paramita, a generosidade.



A Perfeição da Ética Moral

A Ética Moral tem os mesmos sete pontos como o capitulo sobre a generosidade; reflexão sobre as virtudes e faltas, definição, classificação, características de cada classificação, crescimento (expansão) perfeição e resultado.


I - Reflexão sobre as virtudes e faltas - O primeiro ponto deste capítulo vai discorrer sobre os benefícios que advêm de se observar a ética moral e os danos se não o fazemos. Na verdade, isto nos fornece os motivos da necessidade de observar a ética moral.

Quando falamos sobre ética moral nós não estamos falando sobre algo rígido e áspero como algo que nos aprisiona a grilhões. Não é como no caso de uma criança a quem não são permitidos doces quando ela pede, como em uma situação em que a criança continua importunando por doces que estão ali e nós proibimos. Alem disso não é como no caso de quando a criança quer sair para brincar e os pais não permitem dizendo: “não você tem que ficar em casa”. A Ética Moral não é como uma ordem proibindo as coisas. A ética moral também não nos impede de desfrutar de qualquer coisa boa ou prazeres que possamos ter nesta vida. Igualmente, não se está tentando nos colocar numa prisão ou nos fazendo passar por um mau bocado, nos impedindo de ter qualquer divertimento, como alguém que é posto em uma camisa de força. Isto não é ética moral. Ao contrário, o propósito da ética moral vem do fato de que nossas mentes estão sempre ocupadas com o desejo, querendo coisas. Nós sempre temos este sentimento de “eu quero isto” ou “preciso daquilo”.

Se nós perseguimos o objeto do desejo, qualquer que ele seja, nunca estaremos satisfeitos. Esta é a natureza do desejo, de nunca se satisfazer. Não importa o quanto estejamos comprometidos em atender nossos desejos, nunca encontraremos uma verdadeira satisfação e o desejo nunca vai parar. Ele é comparado a beber água salgada para aplacar a sede. Se tomamos um copo de água salgada, quanto mais bebermos, mais sedentos ficaremos. Vamos tomar um copo atrás do outro porque ficaremos mais sedentos a cada copo. Do mesmo modo, não importa o quanto temos porque sempre vamos querer mais, e é desta maneira que nos relacionamos com todos os prazeres ou objetos em geral. Antes de começarmos a perseguir algo, pensamos: “Bem, se eu tiver isto, ficarei muito feliz”. Mas, uma vez tenhamos conseguido o objeto, vamos querer mais. O desejo continua e produz mais e mais frustração e mais e mais sofrimento. Não podemos cometer o erro de pensar que perseguir cada pensamento de desejo e dos prazeres que se seguem nos proporcionará os sentimentos de paz e felicidade que estamos de fato procurando.

Se permitirmos ao desejo tomar sua própria direção e aumentar mais e mais, teremos um processo sem fim. Ele nunca vai parar. Podemos mesmo chegar ao ponto no qual mesmo que o mundo inteiro fique a nossa disposição ainda assim não nos sentiremos felizes e contentes. Nunca alcançaremos o ponto em que iremos pensar: “Ok, isto é o suficiente, agora está tudo bem. Estou satisfeito.” É da própria natureza do desejo gerar insatisfação. Pensamos que o desejo traz satisfação, prazer etc., porém ele traz apenas mais insatisfação, uma vez que a mente nunca se contenta e nunca pensará: “Já tenho o suficiente”. Ao contrario ela sentirá: “Quero isto, quero aquilo, quero mais. Isto não é o suficiente”. Nunca haverá satisfação.

Se pudermos impor limites ao desejo e interromper seu fluxo, as coisas se tornarão melhores. Por exemplo, se temos uma picada de mosquito que coça muito e pensarmos que podemos encontrar alívio deste incômodo nos coçando, a coceira vai ficar pior e vamos ter que coçar mais. Ela nunca vai parar por ser coçada e no final ficará pior. Poderemos finalmente arranhar a nossa própria pele, mas ainda teremos a coceira e ela não ficará melhor. Por outro lado, se formos capazes de controlar a coceira da picada, então, pouco a pouco, a coceira vai diminuir e desaparecerá completamente. Do mesmo modo quando queremos coisas e desfrutamos delas nosso desejo aumenta mais e nunca nos sentimos contentes. Na medida em que nosso desejo se desenvolve e cresce, nossas frustrações, dores e problemas se tornam maiores. Mas se pudermos colocar um limite no desejo, se conseguirmos parar de nos envolver com o desejo a todo momento, então, com o tempo, ele irá decrescer e, com isso, o sofrimento, a dor e os problemas também diminuirão.

A razão pela qual o Buddha chamou a qualidade da ética moral de shila em sânscrito é porque shila significa calma (paz, controle. frescor). Isto descreve o que ocorre quando paramos de seguir as ideias do desejo podemos encontrar calma (pacificação, frescor) e felicidade. Frescor aqui é usado como similar à experiência de se viver em um país muito quente e experimentar uma brisa fresca através da qual nos sentimos imediatamente aliviados do ardor do calor. Se pudermos nos sentar embaixo da sombra de uma árvore, nos sentiremos bem, frescos e relaxados, pelo alívio do calor ardente. Nossa situação é que o fogo do desejo está constantemente ardendo em nós. O que pode aliviar esta ardência do desejo é a pura Ética moral a conduta pura. Isto é comparado à brisa fresca ou à experiência de entrar em uma casa muito fresca e automaticamente sentir-se apaziguado, refrescado e relaxado. A qualidade particular da ética moral é o estado de relaxamento (frescor) que é a conduta correta.

Outra palavra que descreve a qualidade da ética moral é "pratimoksha", que em Sânscrito, que significa “regras de disciplina”.

Algumas explicações sobre isso não são muito precisas. Por exemplo, frequentemente esta palavra é explicada em termos da liberação: se você guarda os votos apropriadamente então você ganha a liberação do samsara. Esta não é realmente uma explicação muito exata. A verdadeira explicação é a de que por manter os votos você se tornará livre do sofrimento que surge quando você não os mantém (transgride seus votos); um sofrimento específico que advém de uma ação negativa específica é removido pela manutenção do voto que evita que se cometa este ato. Por exemplo, se você tomou o voto de não matar, não roubar e não se envolver em má conduta sexual, você estará então automaticamente liberado de todo o sofrimento e dor que surgem de matar, roubar e se engajar em má conduta sexual. Neste sentido, o nome pratimoksha significa “liberado das dificuldades específicas associadas a estes votos.”

Quando falamos em nos tornar livres do sofrimento e da dor, o que realmente isto significa? Se examinarmos a fonte da nossa felicidade e do bem que experimentamos na vida, vemos que elas vêm do controle que temos sobre o que fazemos, por termos livre arbítrio, livre escolha de fazer aquilo que escolhermos. Se seguirmos nossos desejos e ficamos perdidos nos objetos dos nossos desejos, perderemos o controle. Perderemos nosso livre arbítrio e nos tornaremos escravos do nosso desejo e dos objetos de nosso desejo. Assim, se alguém é um bebedor compulsivo, ele perde seu livre arbítrio de fazer isto ou aquilo; é totalmente escravo do álcool. Como isto é verdadeiro para todas as configurações do desejo, assim que alguém se torna viciado em algo, perde sua própria liberdade e habilidade de escolher. Torna-se escravo do seu desejo e irá sofrer as consequências. Por isso, se pudermos quebrar ou interromper a cadeia do desejo e envolvimento, nossa própria liberdade é conquistada, nosso próprio livre arbítrio é ganho e o poder de nossa própria escolha é vencedor.

Assim, desde este primeiro ponto de vista, que nos mostra as qualidades e vantagens que surgem da manutenção da ética moral e as desvantagens que ocorrem ao não mantê-las , podemos ver que cultivar a conduta correta é a verdadeira fonte de nossa felicidade.


II – Definição - O segundo ponto deste capítulo nos fala da definição de ética moral. A definição de ética moral é abster-se de ações negativas como resultado de uma motivação pura.

Aqui devo mencionar que o fato de fazermos uma promessa e assumirmos um compromisso de observar os votos é muito significativo e importante. Por exemplo, vamos aqui considerar uma pessoa que não roubou por um dia inteiro. Você pode perguntar “Ele se beneficiou pelo fato de não roubar? Terá adquirido alguma virtude por este motivo?” A resposta é não, se ela não teve a intenção de não roubar, se apenas aconteceu dela não roubar naquele dia. Não existiu nenhuma intenção pura por trás do fato de que ela não roubou naquele dia, nem houve uma motivação de não roubar. Quando recebemos o benefício por não roubar? Nós seremos beneficiados quando houver uma motivação definida, uma determinação de não roubar. Se alguém disser: “Ok, hoje eu não vou roubar ou matar”, passa a existir um comprometimento consigo mesmo e uma intenção por trás disso. Neste sentido, algo positivo e virtuoso foi gerado.

Tudo depende do que estamos visando. Nós podemos dizer: “Não vou roubar ou matar por um dia, um mês, um ano ou uma vida”. De acordo com o que almejamos e determinamos em nossa mente, o tempo que escolhemos mentalmente guardar o compromisso vai determinar o nosso comportamento durante este tempo. Durante aquele tempo, nosso comportamento de não cometer uma ação negativa estará produzindo virtude.


III - Classificação - O terceiro ponto deste capítulo descreve os diferentes aspectos da ética moral. Outra maneira de dizer isto poderia ser através dos três diferentes tipos de votos: ética moral de contenção, moralidade de acumular virtudes dármicas e moralidade de beneficiar outros seres.

O primeiro tipo é a ética moral que é direcionada a supressão das faltas e estabilização da mente. O segundo tipo está dirigido à produção de boas qualidades (amadurecer ou desenvolver as qualidades do dharma em nossa mente). O terceiro é a ética moral de ajudar aos outros seres (levar aos outros à completa maturidade)


IV – Características de cada - O quarto ponto descreve as características de cada um dos três tipos de ética moral.

a. A ética moral da supressão

Este primeiro tipo de ética moral que elimina o comportamento negativo não tem o significado de proibir que se faça o que é prazeroso ou bom. Não significa que tenhamos uma boa vida, fazendo boas coisas e então o Buddha chega dizendo: “Você não pode se divertir. Você deve parar porque isto contradiz o dharma”. Por exemplo: ao invés de se proibir uma criança de comer doces, é mais como se fazer com que uma criança pare de colocar veneno em sua boca, ou seja, é mais como se apontar o que é perigoso e nocivo do que tentar parar o que é bom e agradável. As regras de disciplina e conduta nos mostram que se nos engajarmos em determinadas ações ou deixarmos de evitar outras, então ambas, a curto e longo prazo, resultarão apenas em infelicidade e dificuldades. E por isso que nos é dito: “Isto é o que devemos observar e isto é o que devemos abandonar”.

Podemos ir além disso, e levar em conta a natureza de certas ações. Se produzirmos ações negativas, teremos o sofrimento como consequência. Se evitarmos as ações negativas, não experimentaremos ou causaremos sofrimento. Se o Buddha disse isso ou não, nada muda a verdade de que certas ações são a raiz do sofrimento e trazem com elas a dor. É obvio que se nos engajamos em ações negativas que trazem sofrimento, iremos sofrer, e se evitarmos as ações negativas que trazem sofrimento, não sofreremos. Tomando o exemplo da criança novamente: se a criança quer colocar sua mão no fogo os pais irão reagir: “Não faça isso, porque você vai queimar sua mão!”. Porém, na verdade, digam os pais isso ou não, não fará nenhuma diferença com relação ao fato de que se a criança colocar sua mão no fogo, ela irá queimar sua mão, pois esta é a própria natureza do fogo. Se a criança não colocar a mão no fogo a mão não vai se queimar. Do mesmo modo, tenha o Buddha dito estas coisas ou não, não faz diferença. Devemos abandonar as ações negativas, senão sofreremos. A natureza destas ações é a de causar sofrimento. Esta é a razão porque a manutenção de certas regras de disciplina tem a ver com o fato de que certas ações causam dano.

b. A moralidade de se acumular Virtudes do Dharma

O segundo tipo de ética moral é o de praticar tudo o que é positivo, tudo o que é virtuoso. Nós todos buscamos a felicidade, mas qual são as causas da felicidade? São a bondade e as ações positivas. Se executarmos ações positivas, não causaremos dano a outros seres e além disso estaremos criando as causas de nossa própria felicidade. Este é o motivo porque um dos aspectos da ética moral tem a ver com agir de maneira positiva.

c. A moralidade de beneficiar os outros

O terceiro tipo de ética moral é a intenção de ajudar outros seres. Se alguém pensa: “Preciso ser feliz e encontrar minha própria felicidade”, esta pessoa achará muito difícil alcançar esta aspiração. A razão é porque eles sempre encontrarão outros que automaticamente se oporão às suas prioridades de encontrar a felicidade. A melhor maneira se alcançar a felicidade pessoal é fazer os outros felizes. Se tentarmos ajudar os outros, se nos tornarmos seus amigos, eles não vão criar nenhum obstáculo para nós e encontraremos assim nossa própria felicidade por fazer os outros felizes. Em geral isto significa que não deveria haver nenhuma discriminação na ajuda aos seres, que deveríamos ajudar aos outros a encontrar sua verdadeira felicidade e assim fazendo nós encontraremos a nossa própria felicidade.

Esta é a melhor maneira de encontrar a felicidade para os outros e para nós.

Quando falamos em beneficiar aos outros isto não se refere apenas a uma ajuda a curto prazo, mas sim a uma ajuda última (definitiva), que é não só remover o sofrimento temporário e trazer felicidade temporária mas ajudar os outros a encontrar um tipo de felicidade última e liberação do sofrimento.


V – Incremento - O quinto ponto deste capítulo, e para todas as paramitas, é idêntico ao quinto ponto sobre a generosidade, que é aumentar através do poder da sabedoria primordial (jnana), a sabedoria (prajna) e dedicação. O ponto chave para aumentar a ética moral é ter uma motivação pura.


VI – Perfeição - O sexto ponto também é idêntico para todas as paramitas. A maneira de tornar a ética moral pura é ter tanto a compaixão quanto a sabedoria da vacuidade. Estas são as praticas que tornam a ética moral pura.


VII – Resultado - O sétimo ponto deste capítulo examina os resultados da prática da ética moral, ou, em outras palavras, os benefícios que resultam dela. Existem dois benefícios, um de curto prazo e outro definitivo.

O benefício último é, sem dúvida, alcançar a Budeidade. Ela é alcançada através da prática do dharma e a prática do dharma significa engajamento, não apenas ter ensinamentos, pensar sobre eles e continuar paralisados em um nível teórico, mas, na verdade, realmente trabalhar e praticar. Então, como praticamos o dharma? De três maneiras: através do abandono de todas as faltas de corpo, fala e mente, cultivando todas as virtudes de corpo, fala e mente e, em terceiro lugar, fazendo isto não apenas para nós mesmos, mas para o benefício de todos os seres. Se isso for feito, nós iremos alcançar o resultado e, se não for, não o alcançaremos. Isto é o que pode ser alcançado pela prática da ética moral.

Vamos olhar agora o beneficio a curto prazo da prática do dharma. O primeiro é que todos os Buddhas ficarão satisfeitos e pensarão em nós. Na verdade, a essência da natureza de Buddha é a total ausência de egoísmo. Um Buddha se interessa apenas em beneficiar os outros. Se os Buddhas vêem seres atuando de maneira egocêntrica, prejudicando os outros, não pensando em ajudar os outros, ficarão insatisfeitos. Se os Buddhas vêem seres agindo positivamente e tentando ajudar os outros, ficarão muito felizes. Assim, alguém que tem ética moral fará os Buddhas muito felizes, e será adotado pelos Buddhas, que sempre estarão olhando por eles.

Outro tipo de benefício de curto prazo é que aquele que possui uma verdadeira ética moral se tornará digno de grande respeito. É dito que todos neste mundo irão respeitá-los, mesmo os deuses.

Estes são os dois benefícios em curto prazo da ética moral que deverão ser adicionados ao já mencionado benefício último



A perfeição da Paciência

A paciência constitui o remédio contra a raiva. Da mesma forma que foi feito com as paramitas da generosidade e da ética moral, ela será explicada em sete tópicos principais.


I. Reflexão sobre as virtudes e faltas - O primeiro tópico desse capítulo nos fala sobre os benefícios advindos da prática da paciência e sobre os problemas que resultam quando não conseguimos ser pacientes e damos origem à raiva. Este tópico, então, nos indica as razões pelas quais devemos ser pacientes.

Em primeiro lugar, se não tivermos paciência, isso quer dizer que ficaremos raivosos, e a raiva é algo que realmente devemos tentar eliminar por ser a causa de muitos problemas, tanto a curto quanto a longo prazo. Considerando os problemas a curto prazo se nos permitimos ficar com raiva, vamos desperdiçar todas as boas coisas que podemos ter feito anteriormente; ela vai destruir as virtudes que geramos anteriormente. Isso acontece porque a raiva, por sua natureza, contradiz o caminho espiritual do dharma. O ponto central do dharma é evitar prejudicar outros seres e tentar ajudá-los a encontrar o caminho para a felicidade; é beneficiá-los e fazê-los felizes. Se alguém está raivoso, sua motivação se torna a oposta; ele passa a ter a intenção de prejudicar e causar sofrimento em vez de querer causar a felicidade. Este estado mental, que está em contradição com a própria essência da prática espiritual, vai então destruir qualquer bondade que tivermos gerado.

O segundo problema que surge em conexão com a raiva é que não apenas a virtude é destruída, mas também não encontraremos a felicidade. Quando a raiva surge na mente ela é como um veneno. Se ingerirmos veneno, teremos muita dor e sofrimento físico. Quando a raiva entra em sua mente, o mesmo acontece. Quando a raiva está presente na mente não há mais um sentimento de paz, bem estar ou felicidade, tudo se torna doloroso e existe uma tensão constante criada pela presença da raiva, de tal forma que não podemos mais desfrutar de nada e nada mais é prazeroso. No final podemos não conseguir nem mesmo dormir à noite porque a raiva está nos consumindo. A princípio podemos ser alguém que tem a mente muito clara e que pode pensar de maneira muito nítida e correta, mas logo que nos tornamos vítimas da raiva não podemos mais pensar de maneira adequada por nossa mente estar tão agitada pela raiva.

O terceiro problema criado pela raiva é que no final ela vai nos separar de nossos amigos. Quando ficamos com raiva aqueles que estão à nossa volta vão perceber, nossa face vai ficar com uma expressão zangada e refletir o sentimento que temos em nosso interior. Não vamos ter uma aparência agradável, aberta ou sorridente, em vez disso teremos uma testa franzida e uma aparência irritada. O mesmo vai acontecer com nosso comportamento. Não seremos capazes de nos comportar de maneira suave, em vez disso vamos nos comportar de maneira áspera e desagradável com os outros. Quando falarmos, não seremos capazes de falar de maneira gentil e delicada, falaremos de forma rude e agressiva. Também é provável que insultemos os outros. Então, quando temos raiva e agressão em nossas mentes, mesmo que tenhamos a intenção de dizer algo agradável, acabaremos dizendo algo muito perturbador para os outros, e mesmo que queiramos nos comportar harmoniosamente, não seremos capazes de fazê-lo. Também, mesmo que achemos que queremos sorrir e manifestar uma aparência amigável, não vamos ser capazes porque a raiva será forte demais em nossa mente.

Quando surge a raiva, ela vai afetar as pessoas à nossa volta, sejam eles amigos ou parentes; as pessoas vão notar nosso comportamento desagradável, a expressão desagradável em nossas faces e nossa fala raivosa. Isso vai perturbar os outros. Mesmo que sejamos gentis com eles, mesmo que façamos coisas para ajudá-los, ao final eles ficarão perturbados por este tipo de comportamento por saberem que tudo que podem esperar de nós são palavras raivosas, expressão raivosa e comportamento raivoso. Ao final ficarão tão perturbados que terão que se afastar de nós. Este é, então, o terceiro efeito negativo da raiva: não apenas perdemos nossa virtude, não apenas deixamos de ser felizes, mas perdemos também nossos amigos, nossos parentes e aqueles que nos são próximos.

O quarto problema que vem da raiva é que, por sua causa, vamos encontrar muitos problemas, dificuldades e obstáculos. Logo que alguém é tomado pela raiva, todo seu ser se torna muito grosseiro, áspero e agressivo de forma que todos imediatamente notam isso e deixa de existir a possibilidade de se relacionar harmoniosamente com os outros; as dificuldades surgem de todas as direções. Isso acontece mesmo com aqueles que tentam seguir uma prática espiritual. Mesmo que tentem praticar, desde que se tornam pessoas raivosas só vão encontrar dificuldades e não vão poder realmente praticar porque os outros lhe causarão obstáculos e dificultarão sua prática. Isso também se dá na vida comum. Se alguém é raivoso, vai encontrar constantes problemas e dificuldades.

Esses quatro defeitos causados pela raiva dizem respeito ao curto prazo e são muito evidentes. Existem outros defeitos que surgem da raiva que dizem respeito ao longo prazo ou ao sentido último.

Se temos raiva, é porque a paciência está ausente. De fato, a paciência é uma das qualidades mais importantes que precisamos ter para realizar a budeidade. A causa direta da budeidade é ter o tipo de atitude correta, a maneira certa de pensar, que é a motivação muito positiva de querer a iluminação para o benefício dos outros. O oposto dessa motivação é a raiva, que intenciona prejudicar os outros. Se existe a raiva, automaticamente nossa motivação de realizar a iluminação para o benefício dos outros está ausente. É por isso que dizemos que um dos mais poderosos obstáculos à realização da iluminação é a falta da paciência, sem a paciência é impossível se tornar um Buddha.

São esses os cinco problemas que surgem da raiva, quatro no nível temporário e um no sentido último.

Se tivermos paciência, vamos atingir as qualidades que são as opostas aos defeitos que foram mencionados. Em primeiro lugar, a virtude vai aumentar mais e mais. Em segundo lugar, uma pessoa paciente não vai ter experiências desagradáveis em sua mente. Em terceiro lugar, as outras pessoas não vão ter razão para ficarem perturbadas por nós; vai haver uma relação muito harmônica com os outros que vão se sentir felizes conosco e vão gostar de nós. Em quarto lugar, não vai haver obstáculos ao que estamos fazendo, nem em termos de atividades diárias nem em termos de prática espiritual. Finalmente, é ensinado que a budeidade será atingida muito rapidamente. Shantideva disse: “Não existe defeito que seja tão crucial quanto a raiva, e não existe qualidade tão preciosa quanto a paciência”. Devemos nos esforçar diligentemente para eliminar o pior inimigo interior, que é a raiva. A paciência vai ser a fonte para felicidade nessa vida e na próxima e vai nos levar à budeidade muito rapidamente.


II. Definição - O segundo tópico dessa seção fala sobre a definição da paciência, que é definida como uma mente não perturbada e ausência de reações retaliatórias. Isso se torna possível através de uma atitude compassiva em relação aos outros, em relação àquele que está nos causando prejuízos.

Em todos os sutras o Buddha explica o que a paciência é o estado em que a mente permanece imperturbável. Se alguém nos prejudicou, não reagimos, apenas deixamos a mente permanecer relaxada, sem pensar imediatamente em realizar quaisquer ações. Na verdade, o que temos que levar em conta é que, qualquer que tenha sido o dano, ele terminou e está acabado. Teria sido melhor se a pessoa não tivesse nos prejudicado, mas está feito, então não há sentido em reagir, retaliar e começar de novo o processo, já que está feito.

Para não ter pensamentos de vingança, precisamos não guardar rancor em nossa mente e não pensarmos sobre isso, apenas abandonar todo o caso. Se pensarmos sobre isso, vamos manter o pensamento durante o dia inteiro, o mês inteiro ou mesmo por mais tempo, e enquanto remoemos esse pensamento nossa raiva vai se tornar cada vez maior. Ao final isso vai ser a fonte muitos problemas e sofrimento, tanto para nós quanto para a outra pessoa. Então a essência da paciência é não remoer sobre a lembrança do que foi feito para nós e não pensar sobre isso, mas abandonar e esquecer esse pensamento.


III. Classificação - Os diferentes aspectos da paciência são definidos em termos do objeto em relação ao qual temos que ter paciência. Encontramos três diferentes tipos: a paciência de não sermos perturbados pelo prejuízo causado pelos outros, a paciência de aceitar o sofrimento e a paciência de entender o dharma.

Estes tipos são bem simples de entender. O primeiro é a paciência com os inimigos ou aqueles que tentam nos prejudicar. O segundo é a paciência em face ao sofrimento, problemas e dificuldades que temos que enfrentar devido a nossas ações prévias. O terceiro é a paciência de que necessitamos quando encontramos as dificuldades envolvidas com o entendimento da grande profundidade do dharma. É difícil compreender o significado profundo do dharma e algumas vezes podemos nos sentir desencorajados e pensar que é impossível entendê-lo. É então necessário ter coragem e enfrentar essas dificuldades. Essa é também um aspecto da paciência.


IV. Características de cada classificação - A quarta seção nos fala sobre a natureza de cada aspecto da paciência. De fato, isso vai nos mostrar formas práticas de como praticar os diferentes tipos de paciência.

A. A paciência de não ser perturbado pelos prejuízos causados pelos outros: a forma de praticar a paciência com alguém que nos prejudique. A maneira de praticar a paciência em relação a alguém que está nos prejudicando é baseada no entendimento do que um inimigo realmente é por sua natureza, em sua essência. Tentamos ver que não existe sentido em prejudicar tal pessoa ou sentir raiva; isso não vai trazer benefício, enquanto a paciência em relação a eles vai ser positiva e muito benéfica. Existem dois conjuntos de instruções originados de dois conjuntos de ensinamentos sobre como praticar a paciência: no Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva ensinado por Shantideva encontramos muitas diferentes maneiras de praticar e meditar sobre a paciência, e nos Níveis de Bodhisattva ensinado por Asanga, cinco técnicas para desenvolver a paciência são ensinadas,

No Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva de Shantideva existem nove maneiras de praticar, ou coisas para se examinar.


1. Considere que aqueles que nos prejudicam não têm liberdade

Primeiro, analise alguém que está nos prejudicando. Eles estão totalmente fora de controle e sob o poder da raiva. A razão porque estão nos prejudicando é que não podem conter a raiva que os torna agressivos. Aquela pessoa não nos causa os males que sofremos, em vez disso é a raiva que a manipula e controla. Nosso verdadeiro inimigo é a raiva. O que tem que ser removido é a raiva, sob qualquer forma, de nós mesmos, dos outros, em qualquer lugar, a qualquer tempo. A forma de reagir quando alguém nos prejudica é entender que a fonte do prejuízo é a própria raiva, não a pessoa. Nesse caso devemos pensar que a raiva é a fonte de todo o sofrimento e problemas e que estamos determinados a eliminar a própria raiva. Pensando dessa forma tentamos nos manter relaxados e sermos pacientes.


2. Considere os danos como a culpa de nosso próprio karma.

A segunda forma de praticar a paciência é entender que aquilo que está acontecendo conosco, quaisquer males que experimentemos, é o resultado de ações prévias. Em geral, a fonte de toda nossa felicidade é tudo de bom que tivermos feito no passado, quaisquer ações virtuosas que tivermos feito, inspirados por uma pura motivação. Quaisquer ações negativas que tivermos feito, inspirados por motivações negativas são a causa de todos os nossos sofrimentos. Então, atualmente parece que estamos sofrendo por causa de nosso inimigo, mas de fato isso é o resultado de nossas próprias ações negativas, previamente realizadas. Devemos entender que nossos problemas não são causados por nossos inimigos, mas por nossas ações negativas anteriores. Pensando dessa forma, entendemos que não existe sentido em ficar com raiva dos outros porque a causa real são nossas próprias ações negativas. Com esse pensamento em mente tentamos praticar a paciência.


3. Considere que o prejuízo é culpa de nosso próprio corpo.

A terceira forma de praticar a paciência é entender que a razão porque estamos sofrendo, se alguém está nos causando danos, é porque temos um corpo. Seria, então, entender que a culpa está no fato de termos um corpo. Se podemos ser feridos por alguém não é pelo atos dessa pessoa, e sim porque temos um corpo. Se não tivéssemos um corpo, então armas e espancamentos não poderiam nos ferir. Entretanto, tomamos esse corpo ilusório feito de carne e sangue, que tomamos como sendo nosso eu, e por causa disso estamos agora expostos à dor. Por exemplo, se alguém nos apunhala com uma faca, vamos experimentar a dor de ser esfaqueados porque temos um corpo. Não seria correto culpar o inimigo pela dor que experimentamos. É claro que parece que o inimigo está causando a dor por estar nos ferindo com uma faca, ou com o que for, mas na verdade isso é apenas devido ao fato de que temos um corpo, em primeiro lugar. Não é, então, correto culpar um inimigo pela dor que vem de nós. Essa deve ser outra forma de nos fazer parar e pensar, e termos paciência.


4. Considere que o dano é culpa de nossa própria mente

A quarta maneira de praticar a paciência é entender que qualquer dor que experimentamos é culpa de nossa própria mente. Quando alguém nos fere a causa real é que, em primeiro lugar, nossa mente cometeu um grande engano. Quando nossa mente olha para o corpo e diz: “Isso sou eu! Esse é o meu corpo!”, nossa mente tomou um corpo inferior. Em vez de tomar um corpo resistente feito de ferro ou de pedra que nada poderia quebrar ou ferir, nossa mente tomou esse corpo frágil e sensível, que pode ser ferido com tanta facilidade. Por exemplo, a pele pode ser arranhada tão facilmente e tanta dor pode ser sentida. Então, quando alguém nos fere, sentimos dor e ficamos enraivecidos, deveríamos de fato entender que a culpa não é do nosso inimigo, em vez disso de nossa mente que cometeu um grande engano em primeiro lugar por tomar esse corpo sensível que agora pode sentir todo esse sofrimento. Isso deve nos ajudar a sermos mais pacientes.


5. Considere que ambos têm culpa igual.

A quinta maneira de tentar desenvolver a paciência é pensar que realmente tanto nosso inimigo como nós mesmos temos culpa; a culpa não é só de nosso inimigo, mas também nossa. Em primeiro lugar, o inimigo cometeu um engano por estar com raiva de nós, mas devemos ter feito alguma coisa errada para fazê-lo ficar com raiva. Não seria certo, então, ficar com raiva dele porque realmente somos igualmente culpados. A melhor coisa a fazer é apenas esquecer tudo porque ambos estavam errados desde o começo. Essa é outra forma de praticar a paciência em face de qualquer dano causado.


6. Considere o benefício recebido.

A sexta maneira de tentar desenvolver a paciência é pensar que o inimigo está, na verdade, nos beneficiando e ajudando. Pode não parecer que seja assim. A princípio pensamos que eles estão nos causando um monte de problemas e dor, mas quando podemos pensar sobre isso de maneira clara e direta, entendemos que o inimigo está na realidade nos ajudando. A causa de todos os nossos problemas e sofrimentos está em nossos erros do passado. Temos que parar de cometer erros e purificar os que já cometemos. O que pode purificar nossos erros são os seus opostos, virtudes que vão gradualmente eliminar as ações impuras. Então, a raiva presente vai criar mais problemas e mais sofrimento e é a paciência que pode nos ajudar a eliminar os efeitos prejudiciais de nossa raiva passada; ela vai gerar a virtude que pode purificá-la. Nesse sentido o inimigo é alguém que está nos fazendo um favor, ele está nos ajudando a sermos pacientes; sem um inimigo não poderíamos ser pacientes. Então, através do inimigo, podemos ter paciência que vai gerar a virtude necessária para purificar as ações negativas que cometemos conectadas com a raiva. Assim sendo, nós devemos entender que o inimigo está, de fato, nos fazendo um favor e vai nos ajudar a sermos mais pacientes.


7. Considere a gratidão.

A sétima maneira de desenvolver a paciência vai ainda além. Ela diz que deveríamos pensar sobre o inimigo como sendo extremamente bom para nós. Em nossa tentativa de praticar corretamente o dharma temos que tentar desenvolver todas as qualidades das seis paramitas, temos então que tentar ser generosos, manter boa ética moral, ser pacientes e assim por diante. Em conexão com cada qualidade, temos que tentar encontrar o objeto que vai nos permitir desenvolver essa qualidade. Se tomarmos a generosidade como exemplo, é muito fácil encontrar um objeto para a generosidade, já que existem muitas pessoas que querem ou estão procurando por alguma coisa, então é fácil doar coisas. Mas, no caso da paciência, é mais difícil, é uma oportunidade muito rara porque normalmente temos que fazer mal a alguém para fazê-lo ficar com raiva de nós. É raro e pouco comum que alguém que não prejudicamos vá nos causar danos. Então, quando alguém nos prejudica ou é agressivo conosco está nos fazendo um favor muito grande porque está nos fornecendo a oportunidade de praticar a paciência; não poderíamos praticar a paciência sem essa pessoa. Devemos, então, achar que essa é uma oportunidade muito rara, como achar uma jóia extremamente preciosa. Se alguém nos causa danos podemos praticar a paciência e deveríamos pensar: “Isso é uma grande coisa! Agora tenho a oportunidade de praticar a paciência porque alguém está me dando essa oportunidade. Vou usá-la da melhor maneira possível.”


8. Considere como todos os buddhas ficam satisfeitos.

A oitava maneira de tentar desenvolver a paciência é pensar que a paciência vai agradar imensamente aos buddhas. A própria natureza de um buddha é ter grande bondade, amor e compaixão por todos os seres. Se qualquer ser é ferido, os buddhas não ficam satisfeitos. Se alguém evita ficar com raiva e prejudicar , os buddhas ficam satisfeitos. Então, devemos pensar que se pudermos ser pacientes isso agradaria aos buddhas imensamente. Isso irá agradá-los de duas maneiras: primeiro eles vão ver que não estamos prejudicando a outra pessoa e segundo eles vão ver que somos capazes de ser pacientes. Devemos considerar nossa paciência como uma oferenda para agradar aos buddhas.


9. Considere os grandes benefícios.

A nona maneira de praticar a paciência é estar ciente dos grandes benefícios que provêem da paciência. Se alguém é paciente quer dizer que automaticamente todos os seres à sua volta ficarão felizes porque essa pessoa não irá feri-los. Temos também que lembrar que todos os buddhas do passado realizaram a iluminação por terem praticado grande paciência. Devemos sentir que se também pudermos praticar grande paciência vamos realizar a iluminação, e logo que tivermos nos iluminado vamos também poder ajudar outros seres a fazer o mesmo. Dessa forma, estando cientes de todas as coisas boas e benefícios que advêm da paciência, seremos capazes de praticá-la.


Esta foi a explicação sobre a forma de desenvolver paciência através de nove diferentes reflexões. Agora consideraremos as cinco diferentes técnicas de meditação sobre a paciência de acordo com Asanga.


1. Pensar em se sentir próximo de quem nos causa danos.

A primeira forma é pensar que o inimigo nos é muito querido. Atualmente essa pessoa é nossa inimiga, mas temos que tentar entender que em muitas vidas passadas essa pessoa foi provavelmente nosso pai, mãe, amigo querido, nosso filho etc. Acontecerá novamente no futuro que essa pessoa terá um relacionamento próximo a nós. Então, algumas vezes estamos ligados a pessoas de maneira muito próxima e íntima, e algumas vezes de maneira hostil. Algumas vezes as pessoas são nossos amigos e algumas vezes são nossos inimigos. Mas deveríamos entender que é um erro de nossa parte tratar com amor as pessoas apenas quando aparecem como nossos amigos e com raiva quando aparecem como nossos inimigos. Isso quer dizer que devíamos sempre tentar ser gentis com as pessoas, e que não existe sentido em causar danos àqueles que parecem ser nossos inimigos agora. Esta reflexão deve nos ajudar a sermos pacientes.


2. Contemplar que tudo depende de condições interdependentes

A segunda maneira de pensar é que o inimigo não é uma coisa real. A ideia de que outra pessoa é um inimigo é apenas um pensamento; não existe uma coisa real chamada “inimigo”. É apenas por termos caído sob o poder da raiva que chamamos essa pessoa de “inimigo”. Em outro época, na ausência da raiva e com um relacionamento positivo, essa mesma pessoa era chamada de “amigo”. Então, “inimigo” é apenas uma criação da mente, o resultado de uma atitude negativa. É apenas uma maneira de pensar, uma ideia que não possui em si uma realidade verdadeira. Na realidade, não existe tal coisa como “inimigo”. Pensando dessa forma podemos ser pacientes.


3. Contemplar a impermanência.

A terceira maneira de sermos pacientes é pensar que o inimigo é impermanente. Enquanto sentimos raiva tentamos prejudicar a outra pessoa e talvez queiramos eliminá-la ou talvez mesmo matá-la. Mas deveríamos saber que não existe necessidade disso. A outra pessoa é impermanente e vai morrer um dia; ele vai desaparecer por conta própria. Isso deve nos ajudar a sermos pacientes.


4. Contemplar o sofrimento.

A quarta maneira de desenvolver a paciência é pensar no sofrimento. Nós temos que entender que todos, sejam amigos, inimigos, ou aqueles a quem somos indiferentes, estão expostos ao sofrimento. Enquanto a pessoa estiver sujeita à existência condicionada, ela sofrerá de muitas maneiras diferentes. O sofrimento nunca é algo que precisamos criar porque sempre existe muito sofrimento. Em vez de criar o sofrimento devemos tentar eliminá-lo. Então, pensando dessa forma – que não devemos criar mais sofrimento porque já existe bastante dele de qualquer forma – não deveríamos somar mais sofrimento, mas eliminá-lo e tentarmos ser pacientes.


5. Contemplar em abarcar completamente todos os seres.

A quinta maneira é o pensamento de estimar os seres. Quando tomamos o compromisso de realizar a iluminação pelo bem de todos os seres, nos comprometemos em ajudá-los de todas as formas possíveis, nos comprometemos a cuidar deles. Se agora, prejudicarmos alguém a quem prometemos proteger e ajudar, isso não traria nenhum benefício. Isso também deveria nos ajudar a ser pacientes com os que achamos serem nossos inimigos.


Em relação ao primeiro tipo de paciência – a paciência diante do dano – imagine que alguém nos machuque. Nossa reação imediata seria retaliar, achando que se alguém fez algo errado, realmente precisamos fazer alguma coisa a respeito e temos que reagir ferindo essa pessoa. Devemos, no entanto, pensar duas vezes antes de fazer isso, porque se retaliarmos e ferirmos a outra pessoa como reação, isso não aliviará a dor que experimentamos; a dor vai permanecer, quer retaliemos ou não. Primeiro, revidar não vai nos aliviar ou apagar o fato de que alguém nos machucou. Esse é um ponto a ser contemplado. O outro ponto é que se revidarmos, vamos então despertar novamente a raiva da outra pessoa, e enquanto sua raiva arder como fogo, ele vai continuar a nos ferir ainda mais. É esse o motivo porque devemos entender que a retaliação não é a resposta adequada; reagir dessa maneira intensa não é a forma correta de lidar com problemas. A maneira correta, como discutimos antes quando definimos a paciência, é não pensar mais sobre isso, apenas abandonar completamente o assunto. Se pudermos fazer isso, se pudermos suportar não revidar e ser pacientes, gradualmente a raiva da outra pessoa vai diminuir e isso vai esfriar a situação. Você apenas deixa as coisas esfriarem. Essa é a primeira coisa a se fazer, não reagir e retaliar aos males que nos foram causados.

Nos ensinamentos de Shantideva existe um exemplo muito bom para ilustrar o efeito da paciência. Shantideva explicou que se precisamos viajar descalços por muitos diferentes lugares, passando por caminhos, estradas e subindo montanhas, teríamos que andar sobre pedras, seixos pontudos, espinhos e outros objetos que machucariam nossos pés. Ao final, nossos pés ficariam desgastados e cheios de bolhas. Qual seria a solução? Uma solução seria pavimentar cada polegada da estrada por onde teríamos que passar com um tapete de couro, e então não sentiríamos nenhuma dor. Entretanto, o fato é que ao fim daquela estrada, quando continuássemos nossa caminhada, pedras afiadas e espinhos iriam ferir nossos pés, e por isso precisaríamos de outro tapete. Se tivéssemos que fazer isso, teríamos que cobrir toda a terra com um tapete de couro, e todo o couro que existe no mundo não seria suficiente. Mas talvez exista uma solução melhor. Em vez de cobrirmos com couro o mundo todo, poderíamos cobrir nossos pés com couro. Quando tivermos sapatos e solas de couro, seja por onde for que passemos, automaticamente nossos pés estarão protegidos dos espinhos e pedras que poderiam os espetar e cortar. Essa solução faria o mesmo efeito que recobrir o mundo inteiro com couro.

Da mesma forma, se tentarmos usar soluções externas para resolver o problema representado pelo “inimigo”, ao conseguirmos de alguma forma nos livrar de um inimigo, logo encontraremos um novo inimigo que teremos novamente que enfrentar. Quando tivermos lidado com este novo inimigo, o próximo estará esperando, em um processo infindável. Vamos acabar tendo que matar todo mundo, porque sempre haverá alguém que é nosso inimigo. A solução, então, está no nosso interior: é a raiva no interior da mente que tem que ser superada. Este é o inimigo de que temos que nos livrar. Quando tivermos eliminado esse inimigo, não haverá mais razão para temer inimigos externos. Tudo se torna muito suave, como quando vestimos sapatos de couro, e com eles podemos andar por onde queremos. Nada nos fere, nem pedras nem espinhos causarão dor. Precisamos então de paciência, que é a causa raiz para superar os inimigos. Se tivermos paciência, não importa o que aconteça, não haverá raiva nem retaliação.

Isso encerra a seção sobre a maneira que temos que praticar a paciência em conexão com o primeiro tipo de paciência, que é suportar o dano que nos é causado.


B. A paciência de aceitar o sofrimento: a maneira de praticar a paciência através de suportar o sofrimento com reconhecimento. Geralmente, sofrimento é algo de que queremos nos livrar; ninguém quer sofrer. Infelizmente, o sofrimento é o problema universal de toda a humanidade e, mais do que isso, de todos os seres da existência condicionada. Enquanto alguém é parte da existência condicionada, o sofrimento se abaterá sobre ele, porque é parte intrínseca da existência. De fato, quem fala “existência”, está falando “sofrimento”. Podemos sofrer de todos os diferentes tipos e maneiras, devido à doença, pobreza, velhice ou, em geral, o problema comum a toda a humanidade, o excesso de atividade e frustração, o sofrimento que tudo permeia, explicado antes. Isso se aplica para todos, em todos os diferentes setores da vida. Examine alguém muito rico e famoso ou alguém que não tem nenhuma riqueza ou fama; ambos têm os mesmos problemas, passam por sofrimentos que vêm automaticamente, por serem parte da existência. Quando o sofrimento surge, não deveríamos pensar que é algo excepcional que nos atinge pessoalmente ou que somos um caso especial e precisamos ser incrivelmente azarados para experimentar esses problemas. Se tomarmos o sofrimento pessoalmente, iremos aumentar mais a dor pela nossa maneira de pensar. Nós a aumentaríamos até que se tornasse insuportável, tanto que poderíamos até pensar em cometer suicídio; poderia nos levar a esse extremo. Mas não há necessidade de fazer isso. O sofrimento acontece, é parte da existência, mas não devemos tomá-lo como algo pessoal. Não somos uma exceção quando sofremos; sofrer é o destino de todos os seres existentes. Todos buscam a felicidade e ninguém quer sofrer, mas raros são aqueles que encontram a felicidade e libertação do sofrimento.

Devemos entender que, desde que o sofrimento é parte da existência, não há necessidade de exacerbá-lo pelo pensamento negativo e fatalismo. A melhor coisa a fazer em face ao sofrimento é aceitá-lo e pensar que existem maneiras de ir além do sofrimento e se libertar dele. Deveríamos tentar trabalhar nesse sentido.

Temos que suportar o sofrimento, e, como é dito, isso não é uma experiência pessoal. É o fado de todos na existência cíclica, por ser parte da existência condicionada. Em face desse sofrimento, devemos usá-lo. Se pudermos ser pacientes quando o sofrimento surge, saberemos que podemos usar essa oportunidade que se apresentou para ir além do sofrimento. Podemos usar o pequeno problema que temos agora para nos tornarmos livres de todos os grandes problemas da existência. Isso quer dizer: se praticarmos para atingir a liberação do sofrimento, enquanto praticamos certamente passaremos por dificuldades e algumas vezes serão necessários tremendo esforço e diligência para realizar a iluminação, mas teremos que suportar esses problemas e dificuldades. Se compararmos esses pequenos problemas com o sofrimento interminável da existência, veremos que nossos problemas são muito pequenos e realmente vale a pena suportá-los para conquistar a liberdade de todo o imenso sofrimento que a existência acarreta.

É semelhante ao que temos que fazer quando temos uma doença séria. Podemos necessitar de uma operação, e a operação é algo doloroso. Sentimos dor por alguns dias, mas suportamos a dor causada pela operação porque sabemos que ela é o que pode nos livrar do sofrimento muito maior causado pela doença. Da mesma forma, podemos suportar o sofrimento e as dificuldades envolvidas com a prática, sabendo que ela vai nos levar à liberação do sofrimento.

Esse segundo aspecto da paciência se refere não apenas a suportar a dor e o sofrimento, mas vai além disso, a usar o sofrimento para ir além do sofrimento. Como podemos usar o sofrimento para ir além do sofrimento? Se estamos passando por uma dor, dificuldades ou sofrimento no presente, temos que tentar entender qual a sua causa. Vamos tomar como exemplo alguém que jogado em uma prisão. Porque aquela pessoa foi aprisionada? Talvez ela tenha se envolvido em uma briga causada pela sua raiva, talvez tenha roubado alguma coisa, impelida pelo desejo. De qualquer forma, estará sofrendo na prisão por ter feito alguma coisa que surgiu de um estado mental negativo. Essa pessoa, então, tem agora que suportar as dificuldades da prisão por causa de seu desejo ou raiva. Se ele quer evitar experimentar novamente esse sofrimento, vai ter que fazer o possível para evitar a mesma causa que o levou à prisão anteriormente; vai ter que se certificar que seu desejo ou raiva não o levará novamente à mesma situação de ficar trancafiado em uma cela.

Da mesma forma, se passamos por sofrimentos, devemos entender de onde eles vêm. Se não tivéssemos negatividade em nossa mente, não haveria oportunidade para o sofrimento surgir. A primeira coisa a fazer é superar o inimigo interno; o inimigo verdadeiro não está fora de nós, está dentro, e é a negatividade que nos leva a fazer coisas negativas que causam sofrimento. Se pudermos superar este inimigo interno, seremos realmente heróis que podem encontrar a felicidade e superar o sofrimento.

Normalmente as pessoas pensam que os outros são os inimigos e pensam: “Essa pessoa é minha inimiga, então tenho que lutar contra ela. Tenho que comprar uma arma e matá-la”. Mas matar alguém não é uma realização; não existe nada de heróico nisso, porque matar um inimigo é o mesmo que matar um cadáver. O inimigo é tão mortal quanto todos os demais, e se ele morre agora ou depois não faz tanta diferença, ele iria morrer de qualquer forma. É muito mais benéfico matar o inimigo interno, nossa negatividade. Se fizermos isso, essa será a fonte de grande felicidade.


C. Paciência no entendimento do dharma: a maneira de praticar a paciência pelo desejo de contemplar a natureza da realidade. O terceiro tipo de paciência que é necessária é a paciência para entender o dharma. Algumas pessoas podem achar que o dharma, os ensinamentos do Buddha, são tão profundos e sutis que elas não serão capazes de entendê-los, e menos ainda de praticá-los. É claro que se alguém pensa dessa forma não será capaz de progredir e não será capaz de atingir qualquer resultado. O desencorajamento é a sensação de que não podemos entender os ensinamentos, não podemos praticá-los e chegar a nenhum lugar, mesmo se tentássemos. Mas não existe necessidade de se sentir desencorajado dessa forma. Mesmo se queremos atingir algo no nível da vida mundana, temos que colocar algum esforço para realizá-lo, por sabermos a recompensa que teremos a longo prazo. Da mesma forma, podemos tentar praticar o dharma porque sabemos que ele pode nos levar à felicidade.

Como mencionado no capítulo sobre a ética moral, os ensinamentos do Buddha sobre o que praticar e do que abrir mão não têm a finalidade de nos fazer sofrer. O Buddha não disse: “Essas são coisas boas, e vocês tem que abrir mão delas porque elas não são boas para o dharma” ou “Essas coisas realmente vão trazer sofrimento, e vocês têm que praticá-las porque elas estão de acordo com o dharma”. O que o Buddha fez foi apontar qual é a causa do sofrimento, para que possamos eliminar o sofrimento, e qual a causa da felicidade, para que possamos experimentar a felicidade. Da mesma forma, devemos entender que apesar de algumas coisas no dharma poderem ser difíceis de entender e praticar a curto prazo, vale a pena tentar fazê-las, porque os benefícios resultantes serão grandes. Então, sabendo que o Buddha ensinou a verdade das coisas, verdade que nos leva à felicidade, deveríamos ter coragem suficiente de encarar quaisquer dificuldades envolvidas com o entendimento e a prática do dharma.


V. Incremento. O quinto tópico discute como devemos incrementar a paciência, e ela é aumentada da mesma maneira que as outras paramitas, através do poder da sabedoria primordial (jnana), sabedoria (prajna) e dedicação.


VI. Perfeição. O sexto tópico diz que deveríamos tornar pura a paciência. Ela é tornada pura através tanto do entendimento da vacuidade quanto da grande compaixão por todos os seres, como as outras paramitas.


VII. Resultado. Existem dois resultados que advêm da prática da paciência, resultado último e resultado temporário, ou de curto prazo. É ensinado que o resultado último é a insuperável iluminação. A paciência é muito poderosa, e uma vez que esta qualidade esteja presente se sustentará por si mesma. No início pode ser difícil praticar a paciência, mas uma vez que nos acostumarmos a ela, fica mais e mais fácil, até que se torna algo natural, como uma segunda natureza. É ensinado em algumas instruções: “Não existe nada que não fique mais fácil depois que se torna um hábito, que se torna uma segunda natureza”. Então, apesar de no princípio poder ser difícil praticar a paciência, ela vai se tornar mais e mais fácil, chegará a se desenvolver por si mesma, até o ponto em que se realiza a budeidade. Este é o resultado último.

O resultado temporário ou de curto prazo da prática da paciência é que teremos uma longa vida, saúde, boa reputação etc. Podemos interpretar isso como sendo válido para uma próxima vida, mas também poderia se aplicar a esta vida. Se alguém é muito agressivo, terá muitos inimigos e vai então experimentar muitos problemas. Esses problemas são o suficiente para arruinar nossa reputação; para nos fazer adoecer e encurtar nossa vida. Por outro lado, se formos pacientes vamos ter o benefício de ter uma longa vida, de ficarmos livres de doenças causadas pela raiva ou preocupações e vamos provavelmente ter uma boa reputação. Espontaneamente as coisas se tornam melhores e mais positivas, se tivermos paciência.



A Perfeição da Diligência

Nós precisamos saber que uma coisa é necessária para se praticar as perfeições e esta é a diligência, a quarta perfeição. Todas as perfeições são muito benéficas, mas este benefício só pode ser obtido se as praticamos, e a capacidade para praticá-las depende da diligência. Sem diligência, não seremos capazes de alcançar o poderoso e benéfico resultado das perfeições.

É por isso que a diligência é tão essencial entre todas as perfeições.

Vamos agora olhar para o capitulo sobre diligência, novamente a partir de sete pontos.


I.Reflexão sobre as Virtudes e as Falhas. Precisamos saber por que é necessário ter diligência. Assim, o primeiro ponto examina as razões pelas quais necessitamos ter diligência. Se soubermos a razão, será então fácil praticar a diligência. Saberemos por que precisamos dela e vamos querer conquistá-la, de outra forma não nos sentiríamos motivados em buscá-la. O primeiro ponto, então, nos fala sobre as qualidades que surgem em decorrência de se ter diligência e as faltas que surgem por não se ter diligência.

Alguém pode ser generoso, ter ética moral e ser paciente, porém, se não é diligente, cairá sob o poder da preguiça, o que é sempre possível. Sendo preguiçoso, não conseguirá alcançar nenhum resultado real através da prática e não será capaz de acumular muita virtude, então não alcançará muito resultado. Também não será capaz de fazer muito para ajudar outros seres. Finalmente, a longo prazo, não será capaz de alcançar a Budeidade. Assim, se alguém quiser acumular grande virtude, ajudar a outros seres e alcançar a Budeidade precisa eliminar a preguiça, o que é feito ao se cultivar a diligência.

Em muitos sutras o Buda fala sobre os benefícios de ser diligente e as faltas decorrentes de ser preguiçoso. Ele fala disso de forma extensa no Sutra Solicitado por Sagaramati (tib. Lodro Gyatso Zhupai Do). O Buddha diz que aquele que é preguiçoso não pode ter generosidade verdadeira, não pode realmente ter ética moral e não pode ter paciência e prosseguindo em relação a todas as perfeições até sabedoria.

Alguém que é preguiçoso não pode realmente ajudar a outros seres e para tal pessoa a Budeidade estará mesmo muito distante. Por outro lado, se alguém tem diligência, automaticamente se libertará de todos esses enganos, o que quer dizer, será capaz de ter generosidade, ética moral, paciência e prosseguindo em relação a todas as perfeições até a sabedoria. Será capaz de ajudar a outros seres e para tal pessoa a Budeidade estará muito próxima. No Sutra Condensado da Perfeição da Sabedoria (Tib: Shechen Dupe Do) o Buddha diz: “A perseverança não irá obscurecer todas as qualidades virtuosas. Este irá alcançar o tesouro ilimitado da sabedoria primordial dos Vitoriosos” isto significa que uma vez que alguém tenha diligência sua virtude nunca diminuirá e ele será capaz de encontrar o imenso tesouro da sabedoria do Buddha.

Agora estamos conscientes dos benefícios da diligência e que de fato é verdadeiramente muito prejudicial não ter diligência. Uma vez que saibamos disto, precisamos saber o que de fato é a diligência, sobre o que estamos falando. A resposta para isso é dada no segundo ponto, que fala sobre a essência da diligência.


II. Definição. Quando usamos a palavra “virya” (em Sânscrito) ou "tsondru" (em Tibetano) para diligência, isto não quer dizer que não podemos usá-las para algo negativo. Por exemplo, se você investe seus esforços para matar e roubar não é sobre esta diligência que estamos falando aqui. Quando falamos sobre as perfeições, a diligência só se refere às qualidades elevadas, a algo que tem valor.

Outra definição de diligência é ter prazer no que é bom e vale a pena. Ter prazer no que é bom e vale a pena quer dizer que, quando você está fazendo algo que é apropriado e correto, isso será sempre benéfico e somente trará resultados positivos. Também nunca poderá ser a causa de nenhum dano para si mesmo ou para os outros. Isto é verdade seja para qualquer “yana” a que você se refira. Se alguém está praticando virtude seja nos termos do hinayana ou do mahayana, esta qualidade somente será causa de se progredir do bom para o melhor. Ela nunca será a causa de ir do bom para o mau e nunca envolverá prejuízo para os outros. Assim, nós não estamos falando sobre esforço mundano o que pode também se referir a coisas prejudiciais, ao contrário, estamos falando sobre a diligência que apenas se aplica a coisas que valem a pena e que consequentemente só trarão resultados positivos. Isto é diligência definida como rejubilar-se com o que é bom e saudável como sendo o antídoto para a preguiça.

Agora, se queremos praticar a diligência, temos que eliminar a preguiça. Isto significa que primeiro temos que ser capazes de identificar a preguiça, para assim podermos eliminá-la.

Existem três tipos de preguiça: A preguiça da apatia e indolência (também pode se referir ao animal preguiça); a preguiça do desânimo e a preguiça causada por estar envolvido com objetivos menores.

a. A preguiça da apatia ou indolência – O primeiro tipo de preguiça é a apatia ou indolência, o que significa uma total ausência, falta de desejo para agir de algum modo; você não está preparado para fazer nada mesmo e permanece desinteressado. Tudo o que você quer fazer é ficar ocioso deixando o tempo passar em volta e dormindo. Você gosta de sentir-se à vontade e descansar seu corpo e mente e permanece envolvido com o prazer que tira daí. Este tipo de preguiça realmente tem que ser abandonado. Não porque é prazeroso, mas porque, como mencionei anteriormente, este agora é o tempo mais precioso para nós. Esta é uma oportunidade especial para nós. É o momento em que temos o corpo certo com todas as liberdades necessárias e realizações para alcançar o mais elevado objetivo. Também este é o tempo em que temos uma mente suficientemente inteligente para saber e entender o que necessitamos compreender. Este é realmente um tempo de ouro. E este tempo não deveria ser desperdiçado. Ele deveria ser usado de forma apropriada, deveria ser usado para a prática. Seria completamente fora de propósito desperdiçar este tempo dormindo demasiado, deixando-se ficar por aí dando voltas e não fazendo nada.

O Buddha disse que no futuro este precioso corpo que temos agora chegará a um fim, esta oportunidade verdadeiramente preciosa não vai durar para sempre. Agora é a hora que podemos trabalhar para alcançar a Budeidade. Agora é o momento que podemos praticar. Agora é o momento que podemos ajudar outros seres. Um dia este tempo vai se acabar, então temos que usá-lo agora. Temos também que levar em conta que os ensinamentos não permanecerão aqui para sempre. Agora quando eles estão presentes precisamos fazer bom uso desta oportunidade.

Temos, então, todas essas oportunidades preciosas, temos o corpo e a mente certos e os ensinamentos do Buddha estão presentes. Porque não praticamos? Este é o momento de se fazer um esforço. Este é o momento de ser diligente. Se não praticarmos, seria muito estúpido. Então deveríamos mesmo tentar ser diligentes e abandonar o primeiro tipo de preguiça.

Por ser o nosso tempo tão precioso, e haver uma conjuntura tão afortunada em nossa existência, precisamos usá-la apropriadamente e com diligência. Mesmo um momento bem pequeno é importante e desperdiçar um instante sequer é uma grande perda. Portanto, evite o desperdício, mesmo um minuto, até porque ele pode ser usado de maneira muito benéfica. Se meditarmos por um minuto ou recitamos um mantra ou fizermos uma prosternação, este pequeno minuto não será perdido mas trará grandes resultados, ao passo que se apenas desperdiçamos este minuto nada irá acontecer. Da mesma maneira, se usarmos uma hora positivamente, seja meditando ou recitando mantras ou fazendo prosternações ou qualquer coisa de valor isto gerará grandes resultados. Deveríamos levar em consideração que, mesmo tendo em mente que talvez não sejamos capazes de ser diligentes o tempo todo, cada hora que possa ser usada diligentemente irá produzir grandes resultados. Assim, não deveríamos protelar sermos diligentes, não deveríamos pensar: “Ok, começarei amanhã” ou “Ok, começarei no próximo ano”. Precisamos começar já, porque o tempo está correndo. Este tempo precioso, está aqui, agora, mas não estará aqui para sempre.

Como devemos proceder para eliminar a preguiça da apatia ou indolência? Alguns exemplos são apresentados para ilustrar como fazer.

O primeiro exemplo é de um homem muito covarde que de repente vê que uma cobra deslizou sorrateiramente para seu colo. Ele imediatamente dá um pulo, porque se dá conta do perigo. Ele não espera nem um minuto. Do mesmo modo, nós devemos começar a praticar imediatamente, porque o tempo está passando. Outro exemplo é o de uma linda menina cujo cabelo pega fogo. Ela imediatamente para de fazer o que quer que esteja fazendo e apaga o fogo. Da mesma maneira devemos parar imediatamente o que quer que estejamos fazendo e nos engajar na virtude e ser diligente.

Este é o primeiro tipo de preguiça e como eliminá-la.


b. A Preguiça do desânimo. O segundo tipo de preguiça surge do desânimo que ocorre quando você se deprecia dizendo: “Não sirvo para nada nem sou bom. Não consigo fazer nada. Não há razão sequer para tentar porque não vou conseguir. Eu não consigo me esforçar para a iluminação e me livrar de minha negatividade. Não existe nenhuma esperança para mim de ajudar aos outros. Eu não consigo meditar. Talvez bodhisattvas possam fazer tudo isso, mas eu não”.

Quando você se coloca para baixo desta maneira sem nenhuma razão, você fica em um estado de grande desânimo que irá paralisá-lo ao ponto da total incapacidade. Esta é uma maneira errada de pensar porque sejam quais forem as realizações dos Buddhas e bodhisattvas, nós também poderemos realizá-las. Sabemos a razão por trás disto, que vimos no tópico do primeiro capítulo, sobre o potencial de Buddha.

Todos nós temos o mesmo potencial de alcançar a iluminação; a essência de Buddha está dentro da mente de cada um e de todos os seres sencientes. É por isso que seja o que for que o Buddha Shakyamuni alcançou, podemos também alcançar. Além de termos este maravilhoso potencial interno, temos também a oportunidade perfeita da vida ideal dotada com todas as liberdades e qualidades necessárias. E temos os ensinamentos do Buddha para nos ajudar a realizar o objetivo da iluminação. Assim, não existe absolutamente nenhuma razão pela qual não possamos conseguir o que o Buddha Shakyamuni conseguiu. E não existe nenhuma razão pela qual não possamos realizar o que os grandes Mestres do passado como Marpa, Milarepa e Gampopa realizaram. Temos o mesmo potencial e os mesmos ensinamentos que eles receberam. Assim não há nenhuma razão para ficarmos desencorajados. Devemos tentar eliminar esses sentimentos de desânimo e, ao contrário, praticarmos diligentemente.

Se temos todas as boas condições como descrito, potencial para a iluminação e a vida ideal, existe uma garantia de que alcançaremos a Budeidade? Não, não necessariamente, porque teremos que trabalhar para isto. Quem quer que tente realizar a Budeidade irá alcançá-la, mas se alguém nem sequer tenta, então falhará. Assim, se vamos alcançar o Estado de Buddha ou não depende inteiramente de nós mesmos e de nossos esforços. Se trabalharmos para realizar a iluminação iremos alcançá-la, caso contrario não. Até uma pessoa notável irá falhar, se não tentar. É por esse motivo que é importante abandonar a preguiça, o desânimo, e trabalhar diligentemente em direção a Budeidade


c. A preguiça causada por estarmos envolvidos com objetivos inferiores. A terceira forma de preguiça é a preguiça do envolvimento com atividades inferiores. Como mencionado, diligência aqui não se refere a atividades negativas. Se alguém é hábil em fazer coisas negativas, elas acontecem automaticamente, porque são muito desejadas. Se pessoas visitam um bar de manhã e retornam à noite, bebendo o dia inteiro, não seria apropriado dizer que são diligentes no beber porque este não é o significado da diligência.

Diligência não se refere à satisfação da ânsia de alguém por coisas negativas, ou por prejudicar a outros, ou esforço para se tornar rico, famoso ou coisas similares. Ao contrário, diligência só se refere a fazer coisas de valor e benéficas para os demais e para nós, não apenas a curto prazo mas também em sentido último. É quando podemos falar em diligência.

Um dos grandes exemplos de diligência é a história de Naropa, que foi capaz de praticar de forma tão diligente que ele sequer se preocupava com comida ou roupas. Ele foi capaz de superar enormes dificuldades por causa de sua prática.

Antes comentei que Milarepa não praticou a austeridade pela austeridade; ele não estava se privando de alimento e roupa como um objetivo, ao contrário, ele percebeu o quanto era precioso o seu tempo e não queria perder sequer um minuto correndo atrás de comida ou de roupas. Por exemplo, seria muito tedioso para Milarepa ir até a cidade para obter comida, roupas e outros confortos da vida. Ele preferiu usar o seu tempo praticando o dharma, porque ele sabia que o benefício era maior do que o sentimento de conforto físico. Ele não cometeu o erro de cultivar as dificuldades apenas por elas próprias, ao contrário, quis devotar todo seu tempo à pratica e foi capaz de suportar as dificuldades físicas porque queria fortemente alcançar o resultado último. Ele sabia que não existia muito a perder fisicamente, mas que teria sido um enorme prejuízo desperdiçar a oportunidade de alcançar a iluminação. Nada pode parar sua diligência. Deste modo Milarepa foi capaz de ultrapassar os três tipos de preguiça. Não teve indolência, não teve a preguiça do desânimo porque sabia que iria alcançar a iluminação se praticasse diligentemente, assim não ficou também com preguiça por estar envolvido por objetivos menores, porque sequer olhava para comida e roupa. Foi por estar inteiramente livre destes três tipos de preguiça e ser diligentemente devotado a sua prática que ele foi capaz de alcançar a iluminação em uma vida.

Os dois primeiros tipos de preguiça precisam ser abandonados pelos praticantes por conta própria. Outros, como o amigo espiritual e os amigos do dharma podem nos dar instruções para eliminar o terceiro tipo de preguiça. Por exemplo, se o problema vem por não termos confiança ou fé em nós mesmos, os outros podem nos ajudar a escapar deste tipo de preguiça, mas, no entanto, ao final teremos nós mesmos que trabalhar com isso. É essencial compreender por que não devemos nos sentir desencorajados e por que devemos ser diligentes, pois se não entendermos isto, não haverá maneira de evitar a preguiça. Devemos nos manter lendo e contemplando as instruções até que o significado tenha nos impregnado , o que então nos levará ao ponto de genuinamente colocarmos os ensinamentos em prática.


III. Classificação. O terceiro ponto neste capítulo nos fala sobre os três diferentes tipos de diligência: diligência como armadura, diligência de aplicação e diligência insaciável.

O primeiro descreve a melhor e a mais positiva motivação. A segunda, diligência em ação, é quando realmente agimos ou trabalhamos por alguma coisa. Ela descreve o poder e a capacidade da diligência de nos permitir atingir nossos objetivos. O terceiro se aplica a quando nunca temos o sentimento de ter feito o suficiente; isto nos mantém seguindo adiante até que a tarefa tenha sido completamente concluída.


IV. Características de cada Classificação. O quarto ponto examina a natureza de cada uma das três diligências.


a. Diligência como Armadura. A diligência como armadura é descrita em um exemplo. Se alguém está usando uma armadura, seu corpo está protegido por algo resistente, e pensamos que assim esta pessoa poderá passar em meio a seus inimigos ileso sem precisar ficar com medo, porque sabe que está bem protegido. Do mesmo modo a armadura da determinação pode nos proteger. Aqui estamos falando da mais pura forma de motivação, que é a grande determinação.

Se existe uma grande determinação, automaticamente os outros tipos de diligência estarão presentes. Se tivermos decidido fazer algo e tivermos realmente direcionado com intensidade nossa mente, então nós vamos realmente fazê-lo, o que é diligência em ação. Definitivamente levaremos nosso propósito até o final, o que é a diligência insaciável.

Assim a diligência como armadura, a determinação e a motivação condicionam o nascimento dos outros dois tipos de diligência. Se usarmos a armadura da diligência, automaticamente as outras duas estarão lá. No entanto, se ficarmos desencorajados e não tivermos determinação, com certeza não seremos capazes de fazer coisa alguma.

Para ilustrar este ponto, nos tempos de Marpa, Milarepa e Gampopa não havia nenhuma necessidade de se fazer qualquer prática preliminar (tib: Nhondro), porque naquela época as pessoas tinham uma determinação muito forte, tinham um extraordinário desejo de praticar e uma tremenda diligência, assim não havia nenhuma necessidade de se mensurar a diligência através de práticas preliminares. Com o passar do tempo, no entanto, a diligência das pessoas enfraqueceu, e assim eles não tinham determinação suficiente sequer para tomar refúgio. Esta é a razão pela qual esses tipos de medidas tiveram que ser estabelecidas (engajar-se nas práticas preliminares), de fazer cem mil prosternações, cem mil recitações do mantra de Vajrasattva e daí por diante. Isto foi instituído de maneira a ajudar as pessoas a desenvolverem a armadura da diligência, ajudá-las a consolidar uma determinação suficientemente forte para a prática. Uma vez que tenhamos o tipo certo de determinação, nós estaremos dispostos a fazer um milhão de prosternações. Se estivermos preparados para praticar, significa que estaremos aptos a completar cem mil prosternações. Mas se não temos determinação suficiente, então não seremos mesmo capazes de terminar cem mil prosternações. Esta é a descrição do primeiro tipo de diligência, a diligência como uma armadura.


b. Diligência da Aplicação. O segundo aspecto da diligência é a diligência em ação, que se refere a quando temos realmente capacidade de fazer algo na prática.

A diligência em ação tem que ser aplicada de três maneiras: diligência para eliminar emoções perturbadoras, diligência para praticar a virtude e diligência para beneficiar outros seres.


1. Diligência para eliminar emoções perturbadoras. Antes de qualquer coisa, a diligência em ação precisa ser aplicada para eliminar a negatividade. Podemos começar com um sentimento de que existe muito pouco que possamos fazer sobre nossa negatividade, sentimentos de que é impossível se livrar do desejo, da raiva ou do que quer que seja. Se nos sentirmos assim, então, é claro, ficaremos totalmente sob o poder destes sentimentos negativos e se estivermos subjugados não poderemos fazer mesmo nada a respeito.

Mas a questão é que podemos fazer algo. Vamos tomar o exemplo da raiva; se a raiva vai surgir ou não isto só depende de nós. É da nossa própria conta se ela vai surgir ou não. Não existe ninguém controlando a nossa mente dizendo: “Bem se você não tiver raiva agora eu vou bater em você”. É inteiramente conosco. Se decidimos ficar raivosos, nós teremos raiva, se não quisermos ficar raivosos, nós também poderemos ultrapassar a raiva. Assim, precisamos nos tornar responsáveis por nossa própria mente, precisamos nos tornar os chefes de nossas mentes; se tentarmos, podemos fazer isso. Assim, se tentarmos aplicar diligência para eliminar a negatividade, isto definitivamente trará resultados.


2. Diligência para praticar a virtude. A segunda maneira de se aplicar diligência em ação é praticando algo que seja positivo e virtuoso, que neste caso significa aplicar-se na prática das outras cinco paramitas.


3. Diligência de beneficiar outros seres. A terceira maneira de se praticar diligência em ação é beneficiar outros seres. É pensando “Preciso ajudar os outros seres. Posso ajudar outros seres”. Uma vez tenhamos esta determinação e este esforço diligente, seremos capazes de ajudar outros seres.


c. Diligência Insaciável. O terceiro tipo de diligência é a diligência insaciável. Quando fazemos algo sem alcançar nada, nós não pensamos. “Bom, agora já fiz o suficiente. Está tudo bem. Vou parar”. Ao contrário, precisamos seguir adiante até que realmente tenhamos alcançado o objetivo de nossos esforços. O verdadeiro significado de diligência é nos levar até o ponto em que alcancemos o resultado. Assim, deveremos continuar a praticar diligentemente até que alcancemos os resultados. Se apenas aplicamos diligência de tempo em tempo não alcançaremos nada, não haverá nenhum resultado apropriado. Este é o motivo pelo qual a diligência deve ser aplicada até que o completo objetivo seja alcançado.


V. Incremento. O quinto ponto discute como devemos aumentar a diligência. Ela aumenta do mesmo modo que as demais paramitas, pelo poder da sabedoria primordial, da sabedoria e dedicação.


VI. Perfeição. A sexta seção fala que devemos tornar a diligência pura. Ela se torna pura por duas formas: através da compreensão da vacuidade e pela grande compaixão por todos os seres, como nas outras paramitas.


VII. Resultado. O sétimo ponto explica o resultado da diligência. Existem dois tipos de resultado; o resultado último e o de curto prazo. O resultado último da diligência é a realização do estado de Buddha. Isto é tão importante que faz a diligência valer a pena. Mesmo a curto prazo a diligência é muito benéfica. Para qualquer coisa que aspiremos alcançar, mesmo na vida cotidiana, iremos precisar de diligência de modo a atingir um resultado. Sem diligência não iremos alcançar coisa alguma. Tudo isso mostra a grande importância e o valor da diligência.



A Perfeição da Concentração Meditativa

Em nossa busca pela liberação e onisciência, que significa a budeidade, percorremos o caminho e no caminho tentamos eliminar todos os erros que atualmente nos separam da iluminação. Esses erros são encontrados em nossa mente. Mas se pudermos eliminar esses enganos, todas as várias qualidades da nossa essência de Buddha poderão se manifestar. Os enganos que estão presentes em nossa mente são os três venenos – ignorância/confusão, desejo/apego e raiva/aversão – os três erros mentais negativos que são a causa de todos os nossos problemas e sofrimentos. Como já foi explicado, todos os ensinamentos sobre as paramitas são antídotos para nos ajudar a eliminarmos esses estados mentais negativos.

O antídoto para o desejo é o que foi ensinado nas paramitas da generosidade e ética moral. O antídoto da raiva é o que foi explicado na paramita da paciência. A raiz, tanto do desejo quanto da raiva, está na ingorância. A ignorância aqui significa não saber, não entender corretamente o que se apresenta, não entender as coisas como realmente são. Esta é a ignorância básica, não reconhecer e não ver[1]. Do “não ver” surgem todos os outros estados mentais negativos. Ficamos, por exemplo, apegados a um objeto que não é merecedor de apego. Isso vem da confusão ou delusão sobre o que aquele objeto realmente é, de não entender que o objeto não é digno de apego ou envolvimento. O mesmo acontece para a aversão ou raiva, que é inútil e perniciosa tanto para nós mesmos quanto para os outros. Se não entendermos isso pensaremos que está correto nos permitir desenvolver os sentimentos de raiva e aversão. Novamente, isso é devido à delusão, não entender o que realmente deveríamos fazer. Por trás de tudo isso, encontramos a ignorância, que é a raiz de todos os estados mentais negativos. Onde está a ignorância? Ela está em nossa mente.

Sendo a ignorância um estado básico de não saber, como podemos nos livrar dela? Através do conhecimento, como é evidente. Aprendemos o que é verdadeiro através da eliminação do que é enganoso, através de substituir os enganos por sua ausência, substituindo o não saber pelo conhecimento. Para conhecer as coisas como elas realmente são, a mente precisa primeiramente se tornar clara e estável. Atualmente nossa mente se encontra completamente agitada e obscurecida pela presença de muitos diferentes tipos de pensamentos. Temos, então, que começar por tornar nossa mente estável e, depois que ela estiver estabilizada, vamos começar a gradualmente ver o que está realmente lá. O que vai auxiliar a tornar a mente estável é a concentração meditativa ou tranqüilidade mental. Quando tivermos a estabilidade básica da mente, poderemos começar a conquistar a sabedoria ou prajna. Quando tivermos conseguido a sabedoria, poderemos identificar os erros, abandoná-los e enxergar o que realmente há. Esta é a maneira de eliminar a ignorância. Quando a ignorância for derrotada, os outros estados mentais negativos serão automaticamente eliminados. É dessa forma que iremos atingir gradualmente a realização suprema. Vamos agora examinar o capítulo sobre a concentração meditativa, novamente observada através de sete pontos.


I. Reflexão sobre as virtudes e falhas. O primeiro ponto discorre sobre as vantagens e desvantagens, neste caso as vantagens de ter uma mente estável e as desvantagens de não tê-la. Isso será apresentado para mostrar a importância de desenvolver a concentração meditativa.

Para podermos considerar as desvantagens de não ter uma mente estável, precisamos primeiro refletir sobre o estado de nossa mente. Como já foi dito muitas vezes, a natureza verdadeira de nossa mente é exatamente a mesma da mente pura do Buddha. Nossa mente possui a essência da budeidade, que é a união da lucidez e da vacuidade. Apesar de nossa mente ser lucidez e vacuidade, como é por natureza, adquirimos muitos maus hábitos por um tempo muito longo, particularmente o hábito de seguir nossos pensamentos de forma a que esses hábitos passaram a dominar nossa mente. Perdemos o poder de controlar nossa mente, a ponto de não sermos capazes de nos concentrar em alguma coisa se decidirmos fazê-lo; não somos capazes de fazer isso e nossa mente simplesmente toma seu próprio rumo. Sendo assim, se decidirmos tentar evitar os estados mentais negativos, não conseguiremos. Por exemplo, mesmo se pensarmos: “Eu não quero ficar com raiva”, não somos capazes de evitar que fiquemos raivosos, por termos perdido o controle de nossas mentes. De uma forma, isso não faz sentido, porque estamos falando sobre nossa própria mente. Se penso que ela é minha mente, tenho que ter controle sobre ela, mas o poder do hábito é muito forte. Através de nossos maus hábitos chegamos a perder o controle de nossas mentes.

A mente seguiu seu próprio caminho e está comandando a festa. É por isso que é tão difícil tornar nossa mente estável e dirigi-la para algo que seja saudável. Essa perda de controle sobre nossa mente, o fato de que nossos pensamentos nos controlam, e não o oposto, constitui a raiz de todo nosso sofrimento e de toda a existência condicionada.

Conseguir conquistar o controle de nossa mente é muito simples, porque é “nossa própria mente” e não existe motivo para que não sejamos capazes de controlar nossa própria mente. O único motivo para termos perdido o controle é termos adquirido maus hábitos. O que precisamos fazer é nos livrar de nossos maus hábitos e desenvolver bons hábitos até que possamos conquistar o controle de nossa própria mente.

Conseguir o controle de nossa mente e cultivar os tipos corretos de hábitos serão a raiz de todas as formas de alegria e felicidade. A forma de realizarmos isso é através da prática de meditação. O que quer dizer meditação? A palavra meditação, ou prática, significa se tornar acostumado, se tornar familiar, ou cultivar o hábito. Isso quer dizer que tentamos formar um bom hábito; fazemos algum esforço para cultivar a mesma coisa repetidamente. A partir desse esforço para cultivar o hábito correto vamos conseguir nos familiarizar e vamos adquirir qualidades.

Tendo perdido o controle de nossa mente através dos maus hábitos, treinamos os bons hábitos para restaurar nossa mente e conseguir controlá-la. Esta será, então, a raiz de toda a felicidade e bondade. Isso nos mostra as vantagens de ter uma mente estável, as desvantagens de tê-la, e isso deveria nos estimular a tentar desenvolver a mente estável.


II. Definição. A definição da concentração meditativa é a capacidade de controlar a mente para que sejamos capazes de fazer tudo o que precisarmos fazer com ela.

Outra forma de descrever a concentração meditativa é com uma palavra similar usada frequentemente nesse contexto, tranqüilidade, “Shine” em tibetano e “Shamata” em sânscrito. Esse é um estado em que a mente não está nem perturbada nem atada como em uma camisa de força. Significa deixar a mente pacífica e tranquila. Pacífica no sentido de que a mente está relaxada, agradável, positiva e feliz.

É o oposto de um estado mental perturbado em que a mente está tão agitada por pensamentos e estados mentais negativos que se torna muito desagradável e perde o controle. Mas aqui estamos falando sobre o momento em que conseguimos controlar nossa mente e apenas a deixamos permanecer em um estado de paz e tranqüilidade.

O significado desse estado de tranqüilidade é descrito sob a forma de um exemplo da maneira de como devemos tomar conta de um gato. Se temos um gato, a forma correta de nos relacionarmos com ele é suavemente, gentilmente e de maneira relaxada. Se tivermos um gato e o trancarmos em nossa casa, fechando todas as portas e janelas, ele nunca vai se habituar. Ele vai tentar encontrar uma maneira de sair, correndo para lá e para cá, miando, pulando e tentando escapar, mas nunca vai querer se aquietar. Se deixarmos as portas e janelas abertas, o gato vai passear um pouco lá fora, mas não irá longe e sempre voltará. Se também pensarmos que bater no gato e deixá-lo sem comida vai fazê-lo ficar em casa, estaremos muito enganados; o gato nunca vai permanecer nessas condições. Mas se, em vez disso, formos gentis com o gato e o alimentarmos com leite e carne, fizermos carinho nele, ele vai ficar sem problemas. Da mesma forma, quando tentamos obter controle sobre nossa mente, não devemos usar uma atitude vigorosa ou áspera. Temos apenas que deixar a mente relaxar de forma pacífica em um estado agradável e ela vai querer permanecer nesse estado pacífico. Não vamos precisar forçá-la porque ela vai permanecer em um estado que é muito natural.

Quando tentamos manter a mente pacífica vamos encontrar obstáculos, diferentes condições adversas. Alguns desses obstáculos serão nossos estados mentais e outros serão os pensamentos em geral. Todos, no entanto, podem ser descritos como distrações ou pensamentos que constantemente agitam e distraem nossa mente. É muito importante tentar eliminar essas distrações porque quando elas se estabelecem perdemos completamente o controle. Quando tentamos eliminar as distrações, não vai adiantar pensar: “Bem, eu agora preciso abandonar as distrações” porque isso não vai ajudar, ao contrário, mais pensamentos surgirão. A maneira de abandonar as distrações tem dois aspectos: primeiro isolar nosso corpo das distrações e segundo isolar nossa mente dos pensamentos.


A. Isolar nosso corpo das distrações: Isso quer dizer isolamento, evitar distrações isolando nosso corpo da agitação física. Esse aspecto tem seis tópicos: a característica principal da agitação, a causa da agitação, as falhas da agitação, a característica principal do isolamento, a causa do isolamento e as boas qualidades do isolamento.


1. A característica principal da agitação

É se tornar distraído por estar em companhia, ou em meio a sua família, amigos e posses.


2. A causa da agitação

A agitação surge em conexão com uma mente que está muito apegada e envolvida com as coisas. É quando pensamos: “Eu preciso disso. Eu quero aquilo. Se não conseguir essas coisas, não poderei continuar”. Tais pensamentos nos levam a fazer qualquer coisa para conseguir o que desejamos e vamos colocar toda nossa energia para conseguir exatamente aquilo. Quando pensamos dessa forma vamos seguir constantemente esses pensamentos e, de fato, todos os nossos pensamentos serão focados nesses desejos. Pode ser tentar conseguir comida e roupas, fama ou reconhecimento, tentar encontrar uma esposa ou ter filhos, e assim por diante. Quando procuramos por todas essas coisas nossa mente fica fortemente agitada por todos esses diferentes pensamentos e isso cria uma profunda perturbação em nossa mente de forma que ela não pode permanecer em uma condição pacífica.

3. As falhas da agitação.

Quando nossa mente está agitada por diferentes pensamentos nós perdemos o controle sobre ela, e quando perdemos o controle de nossa mente perdemos o controle de nosso corpo. Isso quer dizer que vamos perder o controle de nossas ações e vamos consequentemente perder o controle de nosso próprio destino. Por exemplo, podemos querer ser felizes e não querermos sofrer, mas quando perdemos o controle sobre o que fazemos, perderemos também o controle sobre o que vai nos acontecer. Então, quando perdemos o controle, isso causa toda a infelicidade mental e física e não conseguiremos o que queremos. Se queremos nos livrar de todos esses problemas, temos primeiro que nos livrar da agitação que causa todos eles.

Os objetos a que ficamos apegados e que nos impedem de encontrar tranquilidade suficiente em nossas mentes para que possamos meditar podem ser de muitos tipos. Os principais obstáculos têm a ver com tentar ajudar e proteger pessoas que nos são próximas, os membros de nossa família e os amigos mais chegados, ou tentar ferir aqueles de quem não gostamos. Pode também ter a ver com tentar adquirir mais riqueza e posses. Todas essas são ações que criam uma mente perturbada, que não pode se concentrar e ficar em paz. Mesmo se tentarmos ajudar os membros de nossa família ou aqueles que nos são próximos não somos realmente capazes de beneficiá-los de forma significativa porque o que fazemos tem uma natureza impermanente. O mesmo se aplica a tentar prejudicar nossos inimigos, que também são impermanentes. Outro obstáculo é o envolvimento com nossa própria reputação e desejo de fama. Devemos entender que todas essas ações não trazem grandes benefícios. Não existe garantia que teremos sucesso; mesmo se conseguirmos a fama não saberemos o quanto ela vai durar; o mais provável é que as coisas não deem certo e o resultado final não é definitivo.

Quando nos livramos de fortes envolvimentos com atividades mundanas, que criam uma mente perturbada, devemos primeiro tentar trabalhar para nós próprios, para aprender a conseguir o controle sobre nossa mente. Não devemos interpretar mal isso, e concluir que esta é uma atitude hinayana muito egoísta. De fato, não é isso que se quer dizer. É claro, estamos tentando trabalhar para os outros seres, o que é nosso objetivo, mas primeiro precisamos ter essa capacidade . Se tentarmos ajudar os outros e não pudermos nem mesmo nos ajudar, - não tivermos controle sobre nossa própria vida e mente de forma que não sabemos para onde vamos e não podemos encontrar a felicidade para nós mesmos ou nos libertarmos do sofrimento – então como poderemos realmente ajudar os outros permanecendo nesse estado? Temos então que primeiro chegar ao ponto de conseguir obter qualidades através da meditação e do amadurecimento espiritual para podermos realmente ajudar os outros. É claro que nesse ponto vamos fazer o que pudermos para ajudar os outros. Mas primeiro você deveria ajudar a você mesmo, então você poderá ajudar os outros de maneira correta.


4. A característica principal do isolamento

É estar livre das agitações mencionadas acima.


5. A causa do isolamento

Podemos eliminar o defeito da agitação permanecendo isolados, que significa literalmente permanecer em um lugar solitário. Apesar disso não querer dizer necessariamente ir para um lugar deserto ou remoto, significa primariamente praticar meditação, tentar eliminar os estados mentais negativos e tentar praticar o dharma. Para muitas pessoas, significa principalmente tentar ir para lugares onde o dharma é praticado, como ir para um centro de dharma onde a maior parte das atividades não é dirigida para a vida comum, mas para a vida espiritual. É claro que podemos praticar o dharma em casa enquanto fazemos nossos trabalhos comuns, mas isso é usualmente bem difícil porque vemos que nossa meditação é invadida por pensamentos sobre o trabalho e preocupações. É por isso que é muito benéfico de tempo em tempo, mesmo não desistindo das atividades comuns, passar algum tempo fora para praticar em um centro de dharma.

Você pode tirar uma semana ou um mês para sair e ir para um centro de dharma onde você tenta praticar tanto quanto puder. Durante esse tempo você pode aprender a estabilizar mais sua mente. Na verdade, você vai aprender a cultivar a verdadeira solidão da mente, que torna sua mente mais estável. Você vai aprender como eliminar gradualmente ou abandonar os estados negativos da mente que usualmente o atormentam. Então pode ser muito benéfico fazer isso. Você vai ver que isso irá ajudá-lo a desenvolver sua meditação.


6. As boas qualidades do isolamento

O Buddha falou em um sutra que se as pessoas fazem oferendas de flores, incenso, comida etc. para os buddhas, ou para uma representação de um Buddha com fé e devoção, isso resulta, é claro, em grande mérito. Mas, no que diz respeito aos buddhas, isso não seria a oferenda mais extraordinária. Os buddhas não têm necessidade de flores, incenso, comida ou coisas parecidas; eles não estão privados dessas coisas, de forma que é indiferente para eles se alguém faz ou não uma oferenda. Os desejos de todos os buddhas são de que todos os seres sejam libertados do sofrimento e que eles cheguem a realizar a iluminação. Então os buddhas se regozijam se vêem alguém como nós indo para um lugar de solidão para praticar a meditação. Sendo assim, o Buddha no Sutra da Lâmpada da Lua (em tibetano Dawa Dronmai Do) disse: “O Vitorioso não é honrado por oferendas de comida e bebida ou, da mesma forma, de roupas, flores, incenso e guirlandas. Consegue-se maior mérito dando sete passos em direção a um monastério para beneficiar os seres sencientes por renunciar ao mal, aos fenômenos compostos”. O motivo é que essa pessoa está agora realmente com a intenção de trabalhar pela budeidade, pela iluminação completa. Ela está dando passos em direção à prática para atingir esse objetivo.


B. Isolar a mente de pensamentos discursivos. Não é o bastante isolar o corpo da agitação. Precisamos também isolar nossa mente dos pensamentos. Imagine que você chegou a um lugar de solidão onde vai meditar. Primeiro, temos que examinar nossa mente e todo nosso ser para ver se estamos realmente nos engajando na prática da meditação ou não. Temos que ver o que estamos realmente fazendo com nosso corpo, fala e mente. Com nosso corpo, precisamos verificar se estamos ou não agindo negativamente. Ficar no isolamento, por si só, não é algo necessariamente bom ou que melhore nosso comportamento físico; por exemplo, existem muitos animais selvagens e assaltantes que vivem isolados. Então, se descobrimos que estamos agindo negativamente, precisamos entender que o que estamos fazendo com nosso corpo não é de muito benefício. Temos então que examinar nossa fala. O que estamos fazendo com ela? Nossas palavras são saudáveis ou não? Se descobrimos que estamos falando negativamente devemos entender que isso não adianta muito, da mesma forma que papagaios e pássaros murmuram na floresta. Eles ficam o tempo todo na mata e isso não faz sua fala melhorar. Então, se nossas palavras não são usadas corretamente, ficar na solidão não vai fazê-las melhorar. Finalmente, precisamos examinar nossa mente para ver se ela está decaindo para estados negativos ou não. Se descobrimos que nossa mente se tornou negativa devemos entender que permanecer isolados não é mais benéfico do que é para os animais selvagens ou os macacos que vivem na floresta todo o tempo. Eles vivem lá todo o tempo mas isso não quer dizer que a negatividade de suas mentes esteja curada. Então, se não trabalharmos por isso, permanecer na floresta é inútil.

Depois que tivermos nos examinado cuidadosamente dessa forma, devemos decidir tentar usar nosso corpo, fala e mente de forma positiva e nos encorajarmos a fazer o que pudermos para transformar a negatividade. Como mencionado, o objetivo é abandonar os maus hábitos que formamos em nossa mente, não seguir esses maus hábitos e sucumbir sob seu poder. Em vez disso devemos pensar: “Eu não vou fazer isso e, em vez disso, vou conseguir controle sobre minha mente”.

Se pudermos desenvolver a estabilidade da mente através da concentração e meditação, vamos retomar o controle sobre a mente e automaticamente vamos ficar novamente estáveis.

Quando falamos sobre uma mente estável, a palavra “mente” se refere à maneira em que a mente está, a maneira pela qual ela funciona. Normalmente, nos permitimos correr atrás dos vários pensamentos que surgem em nossa mente, mas estes pensamentos não são parte do verdadeiro estado da mente, da condição natural da mente. Nós apenas criamos estes pensamentos e os seguimos em todas as direções. É como ter de uma água clara e movimentá-la até que fique agitada e turva. A princípio a natureza real da mente é muito clara e não contém pensamentos. Mas a maneira de realizar o estado claro e natural da mente não é pensar “Eu preciso abandonar os pensamentos”. Ao contrário, é apenas deixar a mente estar, deixá-la ser o que é. Apenas a deixe voltar para seu estado natural para que repouse nele. A segunda palavra desta expressão “estável” significa se assentar, deixar a mente se assentar. Deixamos a mente estar no seu estado natural, seu modo normal de ser. Esse é realmente o sentido da meditação, relaxar perfeitamente, deixar a mente voltar para o que é.

Quando falamos sobre meditação, ou cultivar a concentração meditativa ou deixar a mente permanecer em um estado de equilíbrio, não queremos dizer que a mente deve ser forçada ou controlada; queremos dizer deixar a mente relaxar e apenas ser. Isso é o que devemos tentar fazer.

Se considerarmos a natureza original da mente, ela é muito bem-aventurada, alegre e pacífica, porque a própria essência da mente é vacuidade, e sua natureza é claridade. Entretanto, por algum motivo não conseguimos encontrar o caminho para a felicidade. Isso acontece porque a mente é perturbada por fatores mentais negativos que impedem que a mente encontre repouso, paz e felicidade. Quando o Buddha descreveu os fatores mentais negativos ele os chamou de efeitos mentais perturbadores ou emoções perturbadoras[2]. As emoções perturbadoras nos fazem sentir angustiados e infelizes; elas criam todos os nossos problemas e todas nossas dificuldades. Ele deu esse nome para o desejo, raiva, inveja, ignorância etc. porque são esses os fatores negativos da mente que nos fazem sentir infelizes, perturbados e preocupados; eles evitam que nossa mente permaneça em seu estado natural. Este é o motivo porque aprendemos a meditar, para nos livrarmos dessas emoções perturbadoras que afligem nossas mentes.


C. Através do isolamento de corpo e mente, a distração não surgirá. Para atingir a libertação das emoções perturbadoras que afligem a mente precisamos primeiro observar a mente e ver qual é o fator perturbador mais forte. Para algumas pessoas será o desejo, para outros será a raiva e para outros poderá ser a ignorância. Quando identificarmos o principal problema em nossa mente, teremos que aprender o antídoto correspondente. Vemos que existe uma técnica de meditação para eliminar cada problema aflitivo em particular.

De fato, existem três diferentes formas de lidar com os fatores perturbadores que estão presentes em nossas mentes. Uma forma de eliminá-los é a maneira genérica ensinada nos sutras. Uma segunda forma é o aspecto particular mahayana dos sutras, que é o de tentar transformar estes aspectos negativos. A terceira forma é ensinada de acordo com as instruções especiais que chegaram a nós a partir de Marpa, Milarepa e Gampopa. Eles nos ensinaram que não há necessidade de eliminar ou transformar os aspectos negativos; eles devem apenas serem deixados desaparecer por eles próprios. Vamos ver as três maneiras sucessivas de lidar com nossos fatores mentais negativos.


Eliminar as emoções perturbadoras

Se tentarmos deter os fatores mentais negativos, falharemos. A forma de nos livrarmos deles é através de saber o que eles são, aprender a reconhecer sua natureza e eles irão, então, desaparecer. O Ornamento da Preciosa Liberação oferece seis diferentes técnicas de meditação que ajudam a eliminar os cinco principais fatores negativos da mente: para curar o desejo, meditar sobre o que é desagradável; para curar a raiva, meditar sobre a bondade amorosa; para curar a ignorância, meditar sobre a originação interdependente; para curar a inveja, meditar na similaridade entre o eu e os outros; para eliminar o orgulho, meditar sobre trocar a si mesmo pelos outros; e se as emoções perturbadoras ou pensamentos discursivos estiverem igualmente presentes, meditar então sobre a respiração.


1. Para curar o desejo, meditar sobre o que é desagradável

Qual é a causa do desejo? O desejo, basicamente, está enraizado em nosso apego a nós mesmos, ao nosso próprio corpo. Por estarmos muito envolvidos com nosso corpo, ficamos então envolvidos também com os objetos externos. A forma interior do apego condiciona a sua forma exterior. Ela vem da ideia que temos de que nosso corpo é muito bonito, muito agradável e especial. Quando temos esse apego a nosso próprio corpo vamos automaticamente querer adquirir os objetos externos ou ter a nossa volta pessoas que satisfaçam nosso corpo; nosso desejo e apego por nosso próprio corpo vai gerar desejo e apego a objetos externos e pessoas para satisfazer esse envolvimento com nosso corpo. Tal apego é, na realidade, um engano, já que não existe nada a que valha a pena se apegar. Se considerarmos nosso corpo, vamos entender que não existe nada ali que seja permanente, durável, puro ou agradável. Se analisarmos o corpo, vamos achar que ele é apenas feito de diferentes substâncias que não são particularmente puras ou agradáveis. O corpo é composto de carne, sangue, pele, ossos e coisas que são de natureza impura. O corpo não é também permanente ou sólido; nossa carne pode apodrecer, nossos ossos podem se quebrar e todo nosso corpo pode sofrer mudanças e se degradar com muita facilidade. É, então, um engano pensar que o corpo é algo durável, puro, agradável e merecedor de apego. Através de meditar dessa forma, se conseguirmos diminuir ou eliminar o envolvimento com nosso corpo, automaticamente nosso apego pelas coisas exteriores diminuirá ou cessará.

Quando aprendemos a meditar sobre a impureza do corpo, essa não é uma ideia inventada apenas para nos ajudar a bloquear o desejo. Não é que nosso corpo seja puro e tenhamos que criar uma ideia artificial de que ele é impuro para nos livrar do desejo. Meditamos sobre o que está realmente lá; temos que pensar sobre a forma como nosso corpo existe e reconhecer como ele é. Quando fizermos isso vamos realizar que o corpo com que estamos tão envolvidos não é realmente nada com que seja digno permanecermos envolvidos. Devemos saber que não vale a pena manter nosso apego ao nosso corpo. Quando soubermos isso, vamos ser automaticamente capazes de reduzir e eventualmente nos livrarmos desse apego. Como é ensinado, o apego ao corpo é a raiz de todas as outras formas de apego. Se anularmos o apego ao corpo, todas as outras formas de apego serão eliminadas.


2. Para curar a raiva, meditar sobre a bondade amorosa

Isso quer dizer, basicamente, que devemos parar de considerar a pessoa de quem não gostamos como um objeto de raiva ou aversão e, em vez disso, considerarmos essa pessoa como um objeto da bondade amorosa. Na verdade, nada é ensinado aqui além do que foi ensinado no capítulo sobre a bondade amorosa e compaixão; é a mesma meditação.


3. Para curar a ignorância, meditar sobre a originação interdependente

Quando falamos sobre os outros fatores negativos que perturbam nossas mente (tais como desejo, raiva, orgulho e inveja), é muito fácil identificá-los. Podemos vê-los com facilidade porque eles são muito vívidos e ativos. A ignorância, no entanto, não é tão fácil de ser identificada. Não podemos realmente apontar uma coisa e dizer: “Isso é ignorância ou delusão”. Algumas vezes a palavra ignorância é usada de maneiras diferentes. Sob uma forma, ela é chamada de “ti-mug”, que é ignorância ou delusão, sob outras formas ela é chamada de “ma-rigpa”, que é não saber, não reconhecer, que também é ignorância. Seja qual for a palavra usada, ela se refere à mesma coisa. Algumas vezes se fala da ignorância como sendo independente, outras vezes como estando misturada com outros fatores negativos.

Se considerarmos os outros fatores negativos, eles nunca aparecem sozinhos, estão sempre acompanhados pela ignorância; é devido à ignorância que podem chegar a se manifestar. Por exemplo, o desejo; quando temos desejo, não é porque o objeto de nosso desejo seja merecedor, ele não é, na verdade, digno de provocar o desejo. No entanto, não sabemos disso, não reconhecemos corretamente este fato e cometemos o engano de pensar que ele é digno. Como conseqüência de nosso engano – de nossa delusão e ilusão a respeito do objeto – aparece todo tipo de problemas e sofrimentos causados pelo desejo. Mas o desejo é causado pela nossa incompreensão, pelo nosso engano, sendo então desejo misturado com ignorância ou, como seria melhor dizer, ignorância misturada com desejo.

Vamos considerar a raiva. Quando ficamos com raiva, isso envolve a ignorância. Se a raiva fosse benéfica, não haveria nada de errado com ela. Mas a raiva envolve basicamente uma incompreensão, um elemento de delusão e engano. Não entendemos que a raiva não vale à pena e não é benéfica, então aqui temos a ignorância misturada com a raiva. Da mesma forma, esse é o caso do orgulho, inveja e outros fatores mentais negativos.

A ignorância vai, então, contaminar nossa abordagem de todas as coisas. Isso é o que vai nos impedir de nos relacionarmos com as coisas da maneira correta e vai motivar uma visão enganosa sobre suas naturezas. Poderíamos dizer que, a partir do momento em que se estabelecem pensamentos e conceitos, desde esse exato momento, já estamos dissociados de entender a própria natureza das coisas. Isso é devido à presença, ou à interferência da ignorância. A ignorância também pode ser muito vigorosa por si própria, quando, por exemplo, alguém tem visões errôneas e toma posição contrária à verdade. Quando a ignorância é muito forte, automaticamente todos os outros fatores negativos serão muito fortes. No entanto, se a ignorância puder ser reduzida, todos os outros fatores negativos serão também reduzidos; eles perderão seu poder e intensidade. É por isso que é muito importante chegar a controlar a ignorância e gradualmente eliminá-la. Isso é feito por meio da meditação sobre a originação interdependente.

Quando falamos “ignorância”, isso quer dizer não saber. O antídoto contra não saber é aprender a saber. Isso quer dizer saber como as coisas realmente são, conhecer a real natureza das coisas. O que vai nos ajudar a entender isso é aprender sobre a interdependência, como as coisas surgem de forma interdependente, com uma coisa condicionando a próxima. Se pudermos entender isso, podemos conseguir algum entendimento sobre a natureza das coisas e, gradualmente, isso vai diminuir nossa ignorância e fazer com que os outros fatores negativos sejam reduzidos.


4. Para curar a inveja, medite na semelhança entre si mesmo e os outros

A inveja é causada por uma preocupação excessiva com si mesmo, uma preocupação egocêntrica cujo resultado é sempre querermos o melhor para nós mesmos e não nos importamos com o que acontece com os outros. Por exemplo, queremos ser felizes e contentes, mas se alguém mais está feliz, isso nos incomoda. Também queremos nos livrar do sofrimento e das dificuldades, mas se vemos alguém mais se livrar desses problemas, não conseguimos suportar que isso aconteça. Este é o sentimento da inveja. O que está por trás da inveja, ou que constitui sua raiz, advém não pensar sobre todos os outros e estar interessado apenas na própria felicidade e bem-estar; ser totalmente egocêntrico. Isso nos impede de ver que os outros estão, na verdade, no mesmo barco que nós; eles também querem o mesmo que nós queremos.

Quando dizemos que a cura da inveja é entender a semelhança entre nós e os outros, não é no sentido de inventar um remédio para nos livrar da inveja, mas é para termos consciência da maneira como as coisas realmente são. Queremos a felicidade, mas todos os outros também a desejam. Não queremos sofrer, e ninguém mais quer. Todos querem ser felizes porque isso é agradável e é por isso que queremos a felicidade e que todos os outros também a desejam. Ninguém quer ser infeliz, porque isso é doloroso e desagradável e é por isso que não queremos a infelicidade e todos os outros também não a desejam. Com essa meditação, devemos chegar a entender que todos buscam as mesma coisa e que não há razão para tentar encontrar apenas nossa própria felicidade sem pensar que os outros querem o mesmo. Não há razão para apenas tentarmos nos livrar de nosso próprio sofrimento sem pensar que os outros querem fazer o mesmo.


5. O remédio para o orgulho, meditar sobre trocar a si pelos outros

A palavra tibetana para orgulho é “Eu, o rei”. O orgulho significa que você se considera como sendo o mais importante, melhor do que todos os outros, e acha que possui qualidades que ninguém mais tem; você tem um sentimento exacerbado de seu próprio valor, seja isso justificado ou não. De fato, o que temos que entender nessa meditação é que essa forma de egoísmo só nos traz um monte de problemas e complicações, enquanto que se nos importarmos com os outros, boas coisas e boas qualidades virão como resultado.

Se considerarmos os buddhas, sua principal preocupação são os outros, não eles mesmos; sempre agem para ajudar outros seres e podemos ver todas as qualidades que isso traz. Em contraste, se você considerar pessoas como nós, pessoas comuns do mundo, nós estamos interessados apenas em nós mesmos; somos muito egocêntricos e apenas nos importamos com nós mesmos. Veja em que situação isso nos colocou. Então, precisamos ver que quando alguém age com preocupação pelos outros, muitas coisas boas surgem e quando alguém age de maneira egoísta, surgem muitos problemas e muita dor. Isso é o que podemos ver de uma maneira muito simples à nossa volta. Quando alguém atinge qualquer forma de satisfação, felicidade e alguma fama, isso se dá geralmente pelo fato que fez alguma coisa, mesmo que pequena, que beneficiou os outros; ele teve uma preocupação com os outros. Se considerarmos quaisquer problemas e sofrimentos no mundo, eles têm a ver com o egoísmo e com alguém apenas preocupado consigo mesmo e em seu próprio ganho.

É bem evidente, então, que o egoísmo é a raiz de todos os problemas e sofrimentos e que o altruísmo é a fonte de muitos grandes benefícios, vantagens e qualidades. É por isso que aprendemos a meditar dessa forma, substituindo nós pelos outros. Em vez de apenas nos importarmos com nós mesmos, aprendemos a nos preocupar com os outros, e assim substituímos nosso auto-centramento com a preocupação pelos outros.


6. Se as emoções perturbadoras ou pensamentos discursivos estiverem igualmente presentes, então medite na respiração

Como explicado anteriormente, pensamentos não são uma parte natural da mente, eles vêm de nossos maus hábitos. A razão para que achemos tão difícil abandonar os maus hábitos e não consigamos fazer isso rapidamente é porque nossos maus hábitos já vêm de muito longe. Para formar novos hábitos, bons hábitos mentais, e retornar à condição natural, aprendemos a estabilizar a mente através da concentração em um objeto. Se fôssemos usar um objeto externo, isso poderia ser muito grosseiro, então esta não é a maneira escolhida aqui para conquistarmos a liberdade dos pensamentos. O meio escolhido aqui para desenvolver a concentração é a respiração, que é muito sutil e imaterial. Se aprendermos a meditar na respiração, que está sempre em movimento, será muito útil para controlar nossos pensamentos. Existem muitas diferentes maneiras de meditar na respiração, tais como contar as respirações, acompanhar a respiração etc. Todas essas técnicas se destinam a nos conduzir até o ponto em que aprendamos a controlar nossa mente. Quando conseguirmos controlar nossa mente, ela não será arrastada pelos pensamentos.


Transformar as emoções perturbadoras

Além das seis técnicas de meditação para eliminar os efeitos negativos que assolam nossas mentes que foram ensinadas de uma maneira geral nos sutras, existe uma forma de transformar esses fatores negativos usando os aspectos mahayna dos sutras. Essa transformação é usualmente efetivada com a ajuda da pura motivação altruísta, que é a mente desejando a iluminação para o bem de todos os seres, a bodichitta.


As instruções especiais da linhagem de Marpa

Na abordagem especial desenvolvida por Marpa e sua linhagem de filhos espirituais, não precisamos nem eliminar, nem seguir, nem transformar os fatores negativos da mente. O que fazemos é simplesmente deixar a mente permanecer em sua própria natureza, deixar a mente repousar em sua condição natural. Olhamos então para dentro e tentamos ver e encarar o que está acontecendo na mente. Por exemplo, procuramos pela raiva. Mas quando procuramos pela raiva não vamos achar nada ou ver nada. Isso é porque não há nada lá que tenha qualquer realidade. A essência da mente é exatamente como é: ela nunca cessa de estar presente e permanece todo o tempo vazia. Dentro dessa vacuidade não existe uma coisa real como a raiva ou quaisquer outros fatores mentais negativos; eles aparecem como reflexos em um espelho. Se olharmos no espelho, veremos uma imagem refletida, mas se tentarmos encontrar essa imagem, não vamos achá-la. A imagem não está dentro do espelho, ela não está no espelho nem está fora do espelho, ela é um mero reflexo que não tem natureza própria nem uma realidade independente.

Da mesma forma, quando fatores negativos surgem na mente, precisamos aprender a deixar a mente permanecer em seu estado natural, dentro de sua vacuidade original. Dentro dela, todos os fatores negativos desaparecem, por não terem uma realidade inerente. Isso é o que aprendemos a fazer com todos os fatores negativos que aparecem na mente: raiva, desejo, orgulho, inveja ou que for que aconteça. Quando é ensinado que ao procurarmos pelos pensamentos não podemos encontrá-los, isso não quer dizer que não estamos procurando com suficiente afinco, mas é porque não há nada a encontrar, já que essas coisas não têm realidade. Simplesmente aprendemos a deixar a mente estar dentro de si mesma, em sua condição natural. Se pudermos fazer isso, todos os fatores negativos desaparecem automaticamente.


III. Classificação. Depois do tópico que descreve as técnicas de meditação, examinaremos os aspectos da concentração meditativa. Existem três aspectos da concentração meditativa: concentração meditativa que nos traz felicidade quando praticada, concentração meditativa que produz todas as boas qualidades e concentração meditativa que pode realizar o bem para os seres. Estes são os aspectos do que pode ser realizado pela concentração meditativa.


IV. Características de cada classificação. O quarto tópico descreve o que cada aspecto pode realizar.


A. Concentração meditativa que nos traz felicidade quando é praticada. Como já foi explicado, a maior parte de nossos problemas e sofrimentos é de natureza mental. É claro que temos dores e dificuldades físicas, mas a maioria de nossa dor e problemas é de natureza mental. Isso se dá porque não temos controle sobre nossas próprias mentes. Quando praticamos meditação aprendemos a obter controle sobre nossas mentes. Quando tivermos conseguido controlar nossas mentes, automaticamente todos os sofrimentos mentais desaparecerão e encontraremos um estado de felicidade e paz. É por isso que um aspecto da concentração meditativa é que ela nos coloca em um estado de felicidade e paz enquanto é praticada.


B. Concentração meditativa que produz todas as boas qualidades. O segundo aspecto da concentração meditativa é de que ela produz qualidades, o que é uma conseqüência direta do primeiro aspecto. Quando conseguimos retomar o controle sobre nossa mente, esta será então a fonte para que todas as boas qualidades se manifestem.


C. Concentração meditativa que pode realizar o bem dos seres. O terceiro aspecto da concentração meditativa é que, quando tivermos conseguido obter controle sobre nossa mente, então automaticamente seremos capazes de realizar o bem para outros seres. Esse é o terceiro aspecto do que pode fazer a concentração meditativa.


V. Incremento. O quinto tópico discute como devemos incrementar a concentração meditativa. Ela é aumentada da mesma forma que as outras paramitas, através do poder da sabedoria primordial, sabedoria e dedicação.


VI. Perfeição. A sexta seção diz que deveríamos tornar pura a concentração meditativa. Ela é tornada pura através do entendimento da vacuidade e através da grande compaixão por todos os seres, como se dá com as outras paramitas.


VII. Resultado. O sétimo tópico desse capítulo discute os benefícios e vantagens que vêm de se ter uma mente estável. Como já foi dito, a vantagem a curto prazo é que todas as várias qualidades se desenvolverão automaticamente logo que tivermos uma mente estável e conseguirmos controlar nossas mentes. A longo prazo, baseados na estabilidade da mente, vamos conseguir todas as qualidades de meditação e vamos desenvolver prajna (sabedoria-consciência), a mais profunda forma de entendimento. Finalmente, através de tudo isso realizaremos a budeidade.


A Perfeição da Sabedoria (Prajnaparamita)

Antes de mais nada, devemos tentar colocar nossas mentes no estado mental adequado para receber estes ensinamentos. Este é a mente preciosa que visa a iluminação, a preciosa bodhichitta.

Em nosso estudo das seis paramitas, chegamos à sexta e última delas, que é a perfeição da sabedoria. Ela será descrita em sete tópicos, como as paramitas anteriores. Cinco dos sete tópicos serão idênticos, e dois diferentes. Para as outras paramitas, o quinto tópico era referente ao incremento e o sexto tratava de tornar pura a paramita. A força para incrementar e tornar puras as cinco paramitas anteriores era a própria prajna, então isso não se aplica à própria prajnaparamita. No quinto tópico vamos considerar o fato de que prajna deve ser conhecida e no sexto tópico o fato de que prajna deve ser cultivada.


I. Reflexão sobre as virtudes e faltas. Se alguém tem a prajnaparamita, automaticamente a prática das primeiras cinco paramitas tornar-se-a extremamente profícua, no sentido de que conduzirá à budeidade. Com a prajnaparamita, então, nossas práticas, da generosidade até a concentração meditativa, se tornam causas da budeidade. Ela transforma automaticamente as cinco práticas em práticas espirituais, algo que vai além do mundano. Elas se tornam a causa para se ir além dos três reinos da existência condicionada[3], para se atingir a verdadeira liberação. Ao contrário, se alguém não tem a prajnaparamita, então suas práticas de generosidade e ética moral até concentração meditativa produzirão resultados muito meritórios, mas não levarão essa pessoa à liberação; ela não vai atingir a outra margem – paramita quer dizer “que chegou à outra margem”. Se as cinco qualidades das cinco primeiras paramitas não são acompanhadas da prajnaparamita elas não serão verdadeiras paramitas, no sentido de que não serão causas para se atingir a outra margem, o outro lado da existência, que é a liberação.

No Sutra Condensado da Perfeição da Sabedoria (em tibetano, Sechen Dupe Do) o Buddha disse: “Se milhões ou bilhões de pessoas cegas não têm um guia que enxerga e não conhecem a estrada, como eles podem entrar na cidade? Sem a sabedoria, as cinco paramitas cegas, estando sem um guia, não serão capazes de levar à iluminação”. Um homem cego que queira chegar a um lugar não será capaz de chegar lá, por não poder enxergar o caminho. Se alguém que também seja cego quiser ajudá-lo, ele também não conseguirá. Se uma terceira pessoa, também cega, quiser ajudar as outras duas, mesmo assim as três não chegarão a seu destino. Você pode continuar dessa forma, quatro, cinco, seis, até um milhão ou mais homens cegos, eles não chegarão lá porque não conseguem ver onde estão indo. Mas apenas uma pessoa que possa ver corretamente pode guiar todos esses cegos para seus destinos. Da mesma forma, se não há prajnaparamita, as outras paramitas não são paramitas verdadeiras, por não representarem a chegada final à outra margem do samsara. É a prajnaparamita que torna as outras paramitas parte do caminho para a liberação. É por esta razão que entre todas as paramitas, a prajnaparamita é realmente a mais importante, mais vital[4].

Conhecendo as enormes vantagens de ter essa grande qualidade e as desvantagens de não tê-la, vemos a necessidade de entender e desenvolver a prajnaparamita.


II. Definição. O segundo tópico explica a essência da prajnaparamita. A essência da prajnaparamita, sua própria natureza, é o discernimento exato, o exato entendimento e apreciação, e a exata discriminação dos fenômenos. É ver e entender as coisas como elas realmente são, de uma forma muito exata e perspicaz, perspicaz no sentido de que não estamos confundindo as coisas. Seja qual for a natureza real do objeto a ser considerado, nós o apreciamos como ele é, sem confusão. Se algo é branco, entendemos e reconhecemos que ele é branco; se algo é amarelo, entendemos e reconhecemos que é amarelo; se algo é vermelho, entendemos e reconhecemos que é vermelho; não confundimos o branco com o amarelo ou o amarelo com o vermelho. Temos uma apreciação exata do que o objeto realmente é, sem erro ou confusão. Se o objeto tiver tais e tais características, nós o sabemos e não adicionamos a ele alguma coisa mais. É apreciar o que está realmente lá enquanto estiver lá, da forma que estiver. Esta qualidade de entendimento é a melhor maneira de conquistar a liberação de todos os estados de sofrimento da existência condicionada.


III. Classificação. O terceiro tópico discorre sobre os diferentes aspectos da prajna. A palavra tibetana para prajna é sherab, que é composta de duas sílabas. She quer dizer conhecer, conhecimento, entendimento, cognição e rab quer dizer melhor. Esta é, então, a melhor forma de entendimento, a melhor forma de cognição, a melhor mente e o melhor conhecimento. Isso é explicado sob três aspectos: sabedoria do mundano, sabedoria do supramundano inferior e sabedoria do supramundano superior.

O primeiro aspecto deste entendimento é uma forma mundana de entendimento e o segundo e terceiro aspectos são duas formas de entendimento espiritual, sendo uma inferior e a outra superior. Os dois aspectos espirituais serão chamados de prajna - porque muito frequentemente acontece uma confusão na tradução, então usarei a palavra em sânscrito.


IV. Características de cada classificação. O quarto tópico desse capítulo descreve a natureza de cada aspecto de Prajna.


A. Sabedoria do mundano. O entendimento mundano é o que nos permite encontrar a melhor forma de satisfação, contentamento e bem-estar nesta vida. É a capacidade de saber, de entender; é uma forma de inteligência e conhecimento que nos habilita a não sermos ignorantes sobre como as coisas são e como funcionam. Esta é a forma mundana de entendimento, inteligência ou conhecimento.


B. Sabedora do supramundano inferior. O segundo aspecto é prajna inferior, a forma inferior de conhecimento e entendimento que é conseguida em conexão com prática do caminho hinayana[5]. Se este caminho for praticado corretamente e sem erros, se não houver ignorância deste caminho, então a forma inferior de prajna é obtida.


C. Sabedoria do supramundano superior. O terceiro aspecto de prajna é a prajna superior, que é o entendimento além do mundo, o mais alto grau de conhecimento espiritual. É a prajna que é desenvolvida em conexão com o caminho mahayana e denota a ausência de ignorância a respeito da natureza de todas as coisas. Neste capítulo, em particular, não se tratará das primeiras duas formas de conhecimento, apenas a terceira e mais alta forma de prajna será explicada.


Como foi mencionado, o quinto e sexto tópicos são específicos de prajna; eles não são discutidos nos capítulos sobre as demais paramitas. Primeiro precisamos saber o que é prajna e então precisamos cultivá-la. Vamos considerar o quinto tópico, a necessidade de saber o que é prajna.


V. O que é necessário saber: Sabedoria. Precisamos de prajna porque precisamos ir além da existência condicionada e todos os seus sofrimentos, problemas e dificuldades. Uma boa razão para querer ir além da existência condicionada é o sofrimento. Outra razão é que mesmo a felicidade que encontramos na existência cíclica não é uma felicidade estável, não é felicidade permanente. É claro que acontece algumas vezes das coisas correrem muito bem, ficamos muito felizes e as coisas parecem boas em nossas vidas. No entanto, essa felicidade que podemos experimentar não é permanente e imutável. Ela não é imutável porque é sempre contaminada pela presença de várias formas de sofrimento, que são típicas de nossa existência. Existe o sofrimento da mudança; qualquer felicidade que tivermos vai se transformar em algo diferente. Existe também o sofrimento universal, que é inerente ao próprio processo da existência, e assim por diante. Existem todos os tipos de formas de sofrimento, a ponto de que mesmo se estamos felizes, essa felicidade não dura e é logo substituída pela infelicidade e sofrimento. Este é o motivo pelo qual temos que tentar ir além da existência ordinária, para nos livrar do sofrimento, mas também para encontrar a felicidade verdadeira, aquela que não muda o tempo todo, aquela que não vai ser perdida. Para encontrarmos isso, não podemos ficar ignorantes sobre a natureza das coisas. É por esta razão que precisamos de prajna. Precisamos entender as coisas como elas são.

Por que prajna é tão eficiente e benéfica? Sabemos que existem muitas dificuldades, problemas e sofrimentos em nossa existência. Mas qual é a raiz de todos esses problemas? A raiz é o fato de que o mundo não é real, mas tomamos tudo o que se apresenta como sendo real. Apesar de algo ser fantasioso por natureza, nós o tomamos como verdadeiro. Vamos, por isso, encontrar muitas dificuldades e sofrimentos. Por exemplo, se tivermos ouro verdadeiro, ele vai permanecer sendo ouro por todo o tempo em que o possuirmos, e não irá mudar. Mas se tivermos algo que não é realmente ouro e pensarmos que é ouro, em algum momento iremos tentar usá-lo como se fosse ouro, não poderemos fazê-lo e iremos então entender que não é real. Da mesma forma, não importa o quanto tentarmos nos convencer ou pensar que a vida é feliz e agradável, que podemos encontrar a felicidade e satisfação na existência, não importa o quanto tentarmos pensar nesses termos, não seremos capazes de realizar isso, porque é apenas um auto-engano; não existe nenhuma verdade nisso. A única forma de cortar a raiz do sofrimento do samsara é entender que tudo isso é apenas um engano, um auto-engano.

Vamos nos reportar novamente a um de nossos exemplos clássicos favoritos; o de confundir uma corda como sendo uma cobra. Se a luz for fraca ou estiver escuro em um quarto, entramos e vemos uma corda no chão que confundimos como sendo uma cobra; pensamos que vimos uma cobra e ficamos muito assustados e apavorados por achar que a cobra pode nos morder e nos ferir. Como podemos remover o medo que surgiu por pensarmos que isso é uma cobra? Se tentarmos fazer isso conseguindo uma arma, ou tomando um antídoto ou vestindo uma armadura, isso não vai ajudar a remover o medo. A única forma de eliminar o medo é entender que nunca houve uma cobra ali, que é apenas uma corda. Quando soubermos isso, não existe necessidade de nenhum outro remédio; desde que sabemos que foi apenas um engano, automaticamente o medo desaparece. O mesmo acontece com o samsara. Logo que entendemos que a natureza do samsara é apenas ilusória, todo o sofrimento que vem junto com o samsara vai desaparecer automaticamente com ele. Quando soubermos a verdadeira natureza do samsara, então todo o resto vai desaparecer por si só.


A. A refutação de se apegar às coisas como sendo existentes. O remédio para dissipar o engano de atribuir realidade às coisas é a meditação na vacuidade. A forma de meditar na vacuidade tem dois aspectos: meditamos na inexistência de um eu individual e na inexistência de um eu dos fenômenos.


A inexistência de um eu individual

Por que temos que meditar na inexistência de um eu individual? Se considerarmos todos os problemas que temos em nossa vida e todos os problemas e dificuldades que experimentamos em nossa mente, a raiz de todos esses problemas está em todos os fatores negativos que perturbam nossa mente, que trazem um sentimento de sofrimento a nossa mente. Estes são os sentimentos de desejo, raiva, orgulho e ignorância. Atrás de todos estes sentimentos há algo mais profundo, que é o sentimento de um “eu”, a própria ideia do eu. Essa idéia surge quando pensamos “eu”, “mim” ou “eu mesmo”. Logo que temos esse sentimento de eu, passamos a querer algo, e esse querer é o desejo. O desejo significa “eu quero”, “eu preciso” e se relaciona com o “eu” que sentimos que somos. Uma vez que a causa está presente em nós, esse é o começo de todos os problemas. Por exemplo, esse “eu” se sente ferido e esse é o nascimento do sofrimento. A raiz de todos os problemas é essa ideia de um eu. Se pudermos remover a ideia de um eu, automaticamente todos os fatores negativos que perturbam nossa mente vão parar, e todo o sofrimento chegará ao fim[6].

Como podemos, então, parar essa ideia de um eu? Temos que entender que essa ideia de um eu não tem nenhuma realidade. Ela é, em si mesma, uma ilusão, uma delusão, e é por isso que pode ser eliminada.

Quando temos a ideia de um eu, ela se aplica a algo que não existe. Não existe nada que seja um objeto que poderíamos identificar como sendo “eu”, nem nunca existiu algo que pudesse ser chamado de “eu”. Entretanto, apesar de não existir um eu, pensamos nesses termos, e essa é a raiz de todos os nossos problemas. Se chegarmos a entender que não existe um eu real, não teremos então que suprimir a ideia de um eu; ela vai desaparecer por sua própria conta. É muito semelhante ao exemplo de confundir a corda como sendo uma cobra. Não temos que remover a cobra, precisamos apenas entender que ela é uma corda e não uma cobra. Da mesma forma, quando entendemos que não existe nada que possamos chamar de eu, automaticamente essa ideia desaparece, já que essa noção perde sua base de suporte. É por isso que precisamos meditar na inexistência de um eu pessoal.

Que tipo de ideia temos sobre esse eu? O que vem a ser essa ideia de eu? Algumas vezes achamos que nosso eu é o nosso corpo. Algumas vezes achamos que é nossa mente. Algumas vezes achamos que é nosso nome. Mas quando investigamos mais profundamente, descobrimos que o eu não pode ser encontrado em nenhum destes aspectos.

Nossa idéia do eu é de que ele é uma entidade sólida e singular. Entretanto, olhando para nosso corpo, descobrimos que ele é composto por uma coleção de diferentes coisas. Se esse eu fosse nosso corpo, ele seria também nossa mão, nossa perna, nossa cabeça, nossos órgãos, os intestinos e a pele. Isso quer dizer que teríamos muitos eus se ele fosse o corpo. Se nossa mão fosse cortada, isso significaria que o eu teria partido, mas nunca chegaríamos a esta conclusão porque concebemos o eu como sendo o todo. Assim sendo, o eu não é o corpo porque aquilo que chamamos de corpo não é uma coisa, então não há um eu nele. Poderia esse eu ser a mente? Quando tentamos encontrar a mente, não conseguimos achar nada. A mente não está dentro nem fora do corpo, por não ter existência verdadeira, então a mente também não pode ser o eu. Finalmente, podemos achar que o eu está no nome, mas nosso nome nos foi dado, não existe uma base para ele ser um eu. Nosso nome é algo temporariamente designado; podemos receber outro nome, mas isso não faria diferença para nosso eu. É realmente um engano de nossa parte acreditar que o nosso corpo, mente ou nome seja o eu. Não existe nada realmente neles que possamos chamar de eu. Quando chegamos a entender que não existe o que possa ser chamado de eu, então isso anulará automaticamente a ideia de um eu. O resultado será que todos os estados mentais negativos desaparecerão. A consequência disso será o fim de todo o sofrimento.

Além de pensar em termos de “eu”, também pensamos em termos de “meu”. Dizemos “minhas roupas, minhas coisas, meus amigos”. Na verdade, a combinação de “eu” e “meu” é a causa de todas as negatividades. Vamos tomar como exemplo uma xícara. Se alguém joga uma xícara no chão, ela vai se quebrar, e isso não fará nenhuma diferença para nós. Mas se pensarmos “essa é minha xícara, essa xícara me pertence” nós rotulamos a xícara como nossa propriedade e então se alguém jogá-la no chão e ela quebrar, ficaremos com raiva. Por quê? Porque pensamos: “Essa é minha xícara”. Unir o “meu” à xícara vai ser a causa da raiva. No entanto, se olharmos cuidadosamente, não existe diferença entre “uma xícara” e a xícara que chamamos de “minha”, ela continua sendo uma xícara. Se olharmos para ela não existe nada nela que indique que é a “minha xícara”. Mas logo que apegamos a ideia de “minha xícara” à xícara, isso gera todos os tipos de negatividades. Temos que entender que o “meu” que atribuímos à xícara não existe realmente, não é parte dela, é apenas uma ideia que colocamos na xícara. Temos que entender que não existe uma coisa real existente que chamamos de “minha” ou “meu”, são apenas rótulos e construções da mente. Aquilo que sentimos em conexão com a ideia de “meu” ou “minha” é a causa de toda a negatividade, e é por isso que temos que entender que não existe um “meu” verdadeiro.

Quando meditamos na ausência ou inexistência de um eu, isso é feito para entender que a ideia de “eu” e “meu” não existe realmente. Não estamos tentando pensar que aquilo que realmente existe não exista. Por exemplo, se você sabe que tem uma cabeça e pensa “eu não tenho uma cabeça”, isso não teria sentido. Não é isso que estamos tentando fazer. Não é como se o “eu” e “meu” existisse realmente e estivéssemos tentando fazer uma lavagem cerebral em nós mesmos para acreditar que eles não existam. Em vez disso, temos que entender que o “eu” e “meu” não estão realmente onde acreditamos que estejam, mas cometemos um engano de pensar que estivessem lá, como pensamos. É esse engano que temos que parar de cometer, porque ele está causando sofrimento. Se esse engano não causasse problemas, se acreditar em um “eu” e “meu” fosse algo benéfico, não haveria nada de errado com isso. No entanto, porque pensar dessa forma gera tantos problemas para nós, temos que aprender a ver que é um erro. Enquanto existir uma crença em “eu” e “meu”, teremos negatividades, e as negatividades são a causa de todo o sofrimento. O começo disso é algo muito pequeno, um ligeiro mal entendido: a ideia de “eu” e “meu” é algo muito pequeno, mas é a raiz de grande sofrimento. É por isso que temos que chegar a entender que elas são não existentes.

Isso conclui uma breve explicação de uma das maneiras de meditar na ausência de uma auto-entidade, que é a maneira de praticar para entender a inexistência de um eu pessoal.


O método da meditação

Antes de discutir como entender a não-existência da essência dos fenômenos, vamos antes examinar a maneira prática de fazer a meditação em termos da prajnaparamita. Sobre o que meditamos? Vacuidade. Como meditamos? Existem duas diferentes abordagens. Uma é chamada de “abordagem reflexiva” e a outra é chamada de “abordagem imersiva”. Pessoas que gostam de estudar o significado da vacuidade aplicam a primeira abordagem. É uma forma de meditação onde se pensa na vacuidade realmente tentando entender o que ela é. Depois que se consegue um entendimento do que é a vacuidade você a contempla. Esta é uma forma de contemplação discursiva, que é um caminho longo. O segundo tipo de meditação é o enfoque cultivado pelos yogis e é chamado de “abordagem de não fazer nada”, já que se refere àqueles que não fazem nada além de repousar no estado natural de suas mentes. É o aspecto imersivo da meditação em que você não pensa sobre a vacuidade, pensando se ela é desse jeito ou daquele. Você apenas repousa na essência da mente; você se permite imergir na natureza da mente, sabendo que ela não é uma coisa real e sólida e você permanece nesta condição natural da mente.


A inexistência de um eu dos fenômenos

Chegamos a saber o que significa o prajna através de dois meios: através da meditação na inexistência de uma auto-identidade pessoal e também na inexistência do eu dos fenômenos. Agora sabemos que devemos meditar na ausência de uma auto-entidade pessoal, o que nos leva a entender que não existe um “eu” como acreditamos existir. Isso nos leva a entender a sua inexistência. Agora precisamos dar o próximo passo e entender a inexistência dos fenômenos.

A crença na existência de uma essência dos fenômenos é a idéia de que as coisas verdadeiramente existem de uma forma real e substancial. Qualquer objeto que tomemos em consideração, imaginamos que ele seja real e substancial. Essa é a crença na existência de uma auto-entidade dos fenômenos. Estamos no samsara há um longo tempo. Durante esse tempo, provavelmente experimentamos todo tipo de diferentes problemas e sofrimentos. Todos tentam escapar do sofrimento e das dificuldades, mas a forma pela qual tentamos remover os sofrimentos é muito superficial. Tentamos cortar os galhos da árvore mas eles continuam crescendo novamente; podemos ser capazes de resolver um problema, mas outro vai surgir em seu lugar. Isso continua todo o tempo, e vão continuar até eliminarmos a raiz do sofrimento. Se apenas cortarmos os galhos de uma árvore, outros crescerão novamente, mas se conseguirmos cortar a raiz, nenhum mais crescerá. Da mesma forma, temos que tentar cortar a raiz do sofrimento e então não haverá mais causa para o sofrimento surgir. A forma de cortar a raiz do sofrimento é entender a natureza de todas as coisas.

Podemos pensar se haverá um dia em que possamos nos livrar do sofrimento, um tempo em que possamos conseguir a liberação do samsara. É possível conseguir a liberação do sofrimento e do samsara. A razão para isso é que a própria existência condicionada e o sofrimento não são reais. Se fossem reais, não haveria nada que pudéssemos fazer para nos livrar deles. Se alguma coisa realmente existisse, não seria possível mudá-la ou removê-la. Mas como as coisas não existem realmente, é muito fácil nos livrarmos dela. Por exemplo, se vemos um tigre saltando sobre nós, não haverá muita coisa que possamos fazer a respeito. Sentiremos medo, e esse medo será justificado, porque não podemos fazer muita coisa a respeito disso; não conseguimos pensar que tudo que temos fazer é despertar e o tigre desaparecerá. Mas, se estamos sonhando e, enquanto dormimos, vemos um tigre saltando sobre nós, não existe razão para ficarmos com medo porque não há um tigre real; sabemos que quando acordarmos o tigre desaparecerá automaticamente. Isso é devido ao fato que enquanto dormimos não existe um tigre que tenha existência real. Da mesma forma, se as aparências ilusórias que experimentamos no samsara fossem reais, não haveria esperanças. Mas temos sorte por essas aparências não serem reais. Como não são reais, é possível nos livrarmos das aparências ilusórias e sofrimentos pelos quais passamos normalmente. É possível nos livrarmos delas porque elas são, por natureza, desprovidas de qualquer existência real. Tudo que é necessário é o reconhecimento, o entendimento da verdadeira natureza das coisas. Se pudermos entender isso, automaticamente todas as aparências ilusórias desaparecerão e, com elas, todos os nossos sofrimentos e problemas. É por isso que é tão vital meditar sobre a inexistência da essência dos fenômenos.

Quando aprendemos sobre a vacuidade de todos os fenômenos, ela é apresentada de duas formas, vacuidade dos os fenômenos externos (ou seja, todos os objetos que percebemos e com que nos relacionamos) e a vacuidade dos fenômenos internos (ou seja, a mente, a consciência com todos seus atributos de lucidez e cognição).


A vacuidade dos objetos externos

Primeiro, temos que considerar a vacuidade dos objetos externos. Se considerarmos essa questão sem havermos contemplado ou meditado sobre ela, pensaríamos que tudo é muito real e sólido; casas, montes, animais, pessoas, água, terra, fogo, ar, tudo nos parece muito real, por estar diante de nós. Estas coisas não parecem vazias de forma nenhuma, porque estão lá, claramente, e podemos ver e nos relacionar com essas coisas. Mas isso acontece antes de examinarmos as coisas cuidadosamente. Se eu mostrar minha mão para alguém e disser: “Minha mão é vazia”, aquela pessoa vai concluir “Isso é besteira. Não faz nenhum sentido, porque eu posso ver uma mão e sei que ela funciona como uma mão. Posso ver que é um objeto físico. Existem carne e ossos”. A pessoa vai pensar que eu estou falando bobagem e não vai fazer muito sentido para ele ouvir que a mão é vazia. Mas quando analisamos cuidadosamente a questão é fácil compreender que não existe uma coisa que seja “a mão”. É claro que quando olhamos para ela vemos uma mão e quando falamos sobre ela, queremos dizer “a mão”, mas pondere mais cuidadosamente. Falamos sobre “a mão”, mas o que vemos é um polegar, um dedo indicador, médio, anular e mínimo. Não podemos dizer que o polegar seja a mão; ninguém diria que é. Também não podemos dizer que o indicador seja a mão, nem os demais dedos, ninguém poderia argumentar coerentemente que alguma dessas partes seja a mão. Se continuarmos investigando, chegaremos ao mesmo resultado. Existe carne, existem ossos, mas nunca vamos encontrar a mão, nunca poderemos apontar a mão porque ela não tem uma verdadeira existência própria. Sendo naturalmente desprovida de uma existência própria ela é, dessa forma, chamada de “vazia”.

Se considerarmos a mão, ela é feita do polegar e dos demais quatro dedos. Como explicado, não há nada que possamos apontar como sendo “a mão”. Mas juntamos todas as partes e formamos a idéia de mão. Então, “mão” é apenas um rótulo que damos para toda a coleção das partes da mão. Mas podemos ir além. Vamos olhar o polegar que chamamos de “o polegar”. Ele consiste, na verdade, de duas falanges. Não podemos dizer que a primeira é o polegar nem que a segunda é o polegar, no entanto chamamos as duas juntas de “o polegar”. Não podemos achar nada que pudéssemos realmente chamar de “o polegar”, apenas partes conectadas. É dessa forma que nos relacionamos com todos os objetos. Consideramos uma coleção complexa de muitas coisas como um objeto e a chamamos de “uma mão”, “um homem” ou seja o que for. Atribuímos solidez e realidade àquilo que designamos, mas esse objeto, de fato, não tem uma substancialidade que o justifique como tal. Da mesma forma que a mão e o polegar são vazios, todos os fenômenos também o são. Não estamos inventando a vacuidade. Seja qual for o objeto que investiguemos, nunca vamos encontrar que existe qualquer “coisa” lá que possamos apontar como sendo o objeto que designamos. O que acontece é que nossa mente atribui um nome e uma ideia a uma coleção de partes, mas o próprio objeto é desprovido de qualquer existência real.

Podemos pensar: “Isso tudo está muito bom e dizemos que todas as coisas são vazias. Mas por que vemos as coisas? Por que percebemos as coisas? Vemos todos tipos de diferentes cores; branco, amarelo, vermelho, verde, azul. Vemos todos os tipos de lugares; vemos casas, morros e barracos. Vemos todos os tipos de diferentes coisas; gente, animais, árvores. Se descobrimos que todas essas coisas são vazias, por que as vemos? Por que percebemos todas essas coisas?”. Bem, o fato é que as coisas não têm que ser reais para aparecerem para nós, ou se manifestarem para nós. Elas são, de fato, manifestações de nossa própria mente. Para entender que as coisas não têm que ser reais para que se manifestem para nós podemos olhar para nossa própria experiência quando dormimos. Quando dormimos, sonhamos e vemos todo tipo de coisas, uma casa, amigos, pessoas, animais, qualquer coisa. Imagine que você vê um grande elefante em seu sonho. Provavelmente você está dormindo em um quarto pequeno e, se o elefante fosse real, não caberia no pequeno quarto onde você está dormindo. Mas é a sua mente que vê o elefante, e sua mente não vê um elefante real, ela vê apenas uma projeção que é a manifestação de sua própria mente. Se o elefante realmente existisse, você não poderia vê-lo, porque ele não caberia no seu pequeno quarto. Mas o elefante não tem uma realidade verdadeira; ele apenas se manifesta a partir de sua mente e aparece para sua mente. Da mesma forma, percebemos e experimentamos todo tipo de coisas que não têm uma realidade verdadeira. Nós as vemos a partir de nossas delusões. Enquanto essa mente deludida permanecer, iremos projetar aparências. O próprio fato de que todas essas coisas são vazias torna possível que elas desapareçam. É em virtude do fato de que todas as coisas são vazias que o sofrimento pode ser removido, tanto temporária quanto permanentemente.


A vacuidade da mente interna

Passamos pelo primeiro passo, que é a explicação da vacuidade das coisas exteriores. Além dessas coisas externas serem vazias, a mente que as percebe também é vazia e irreal. Três razões são apresentadas aqui para a vacuidade da mente: a mente não existe quando examinada sob o aspecto da transitoriedade, a mente não existe já que não foi vista por ninguém e desde que não existem objetos, não existe mente.


1. A mente não existe quando examinada sob o aspecto da transitoriedade

A mente não é uma coisa, é um fluxo constante. É uma sucessão de instantes, um após o outro, mudando o tempo todo. Não existe uma coisa que possamos chamar de “a mente”. Por exemplo, a mente desta manhã não está aqui agora, e a mente da hora passado não é a mente da hora atual. Podemos ir além e dizer que a mente do último minuto não é a mente deste minuto e mesmo que a mente deste instante não vai estar lá no próximo instante. É apenas um fluxo contínuo de instantes de mente. Um instante de mente se vai e é substituído pelo próximo instante de mente, então apenas podemos encontrar a mente dentro de um instante. Então, analisando o próprio instante: se dizemos que a mente tem a natureza de um instante, vamos achar que ela é apenas uma noção de tempo, e nada existe lá, mesmo nesse instante, que possamos apontar e provar que seja uma coisa real; é apenas uma ideia de tempo. A mente, então, não tem uma realidade verdadeira.


2. A mente não existe, já que não foi vista por ninguém

Falamos de mente, mas quem realmente viu a mente? Você a viu? Alguém mais a viu? Quando tentamos procurar a mente é impossível encontrá-la. Você nunca pode encontrar o lugar de onde a mente vem, onde ela está agora, onde ela está indo ou quando ela para. Ela nunca foi vista por ninguém. Ninguém jamais foi capaz de afirmar: “Bem, esta é a cor da mente ou esta é a forma da mente ou é aqui que você encontra a mente”. No entanto, continuamos pensando que existe uma mente, mas quando realmente procuramos por ela, é impossível encontrar qualquer coisa.

No Sutra Requisitado por Kashyapa (em tibetano: Osungkyi Zhupai Do) o Buddha falava para seus discípulos sobre a não existência da mente. Ele se dirigiu a um dos seus discípulos chamado Kashyapa e disse: “Kashyapa, a mente não está dentro, a mente não está fora e a mente não está entre estas posições. A mente não pode ser mostrada para os outros. A mente não pode ser vista. A mente não permanece em nenhum lugar. Não existe mente. A mente é apenas como uma bolha na superfície da água. Ela se parece com uma bolha, mas nada existe lá, ela é completamente vazia em seu interior. A mente é de fato como um fantoche. Ela parece real, mas de fato não há nada lá, ela é completamente falsa. Antes de examinarmos isso, pensamos que existe uma mente, mas depois que olhamos cuidadosamente, descobrimos que não há mente”.


3. Desde que não há objetos, não há mente.

A terceira razão coincide com o que acabamos de comprovar. Todas as coisas externas não têm realidade. Se o objeto não é real, o sujeito que percebe um objeto irreal não pode também ser real. Se o objeto fosse real, a mente que percebe o objeto seria real, mas se o objeto é irreal, se conclui que o sujeito também é irreal e não pode existir por si só. Desa forma, vemos a vacuidade tanto dos fenômenos exteriores quanto dos aspectos internos dos fenômenos, os quais são mente[7].


B. A refutação de se apegar às coisas como sendo não existentes. Agora dissemos que tudo, mente e fenômenos externos, são vazios. O que sobra? Isso quer dizer que tudo é como o espaço vazio ou a vacuidade de chifres em coelho, a total ausência de alguma coisa? Não, não estamos falando de vacuidade nesse sentido. Se considerarmos a vacuidade do espaço ou a não existência de chifres em um coelho, essas são coisas que não podem ser mudadas, que não podem tomar uma forma. Mas quando falamos sobre a não existência das aparências externas e da mente, isso não é como o espaço vazio porque possui a qualidade da clareza. Aqui a clareza não se refere à claridade da luz do sol, mas clareza é o fato de que dentro da vacuidade tudo pode se manifestar, pode aparecer e acontecer. Sendo não existente, sendo vazio, tudo pode acontecer da mesma forma que um reflexo pode aparecer na superfície de um espelho. Isso é chamado de “a própria expressão da natureza dos fenômenos”. Se chegarmos a entender isso, toda a nossa negatividade e todo nosso sofrimento automaticamente desaparecerão[8].


C. O caminho que leva à liberação. Se meditarmos sobre a vacuidade para entendermos a vacuidade de todas as coisas, não haverá necessidade de tentar lutar contra o sofrimento ou tentar suprimi-lo. Tudo de que precisamos é entender que o sofrimento é vazio e inexistente. Quando soubermos que ele é inexistente, não existirá mais a necessidade de suprimi-lo; ele irá desaparecer por si mesmo através do entendimento. O mesmo é verdadeiro para os estados mentais negativos. Podemos a princípio sentir que eles causam desgosto à nossa mente, que são um grande problema para nós e que queremos combatê-los. Mas depois que meditamos na vacuidade, tudo o que temos a fazer é ver que em essência todos os fatores negativos da mente são vazios e inexistentes. Se formos capazes de ver isso, eles desaparecerão por si mesmos e não existirá mais necessidade de lutar para tentar eliminá-los. Tudo o que temos a fazer é nos acostumarmos ao fato de que eles são vazios em sua própria essência.

Dissemos que tudo é vazio, mas através do jogo da originação interdependente as coisas aparecem e se manifestam para nós. Mas como podemos atingir o ponto onde isso acaba e a vacuidade de todas as coisas se manifesta para nós? Se fosse apenas uma questão de estarmos dormindo, poderíamos apenas acordar e tudo estaria acabado. Mas não podemos realmente acordar. O que podemos fazer? De fato, não é um sonho, é similar a um sonho de várias maneiras, mas um sonho é apenas um momento de experiência muito curto, enquanto o que experimentamos agora é o resultado de uma acumulação muito longa de ilusão. Como estamos nessa existência condicionada há número interminável de eras, formamos um hábito de ilusão muito forte. A cura para essa ilusão não pode se dar através de um momento de entendimento. Entender como as coisas são é útil, mas é necessário mais do que o entendimento; precisamos cultivar esse entendimento até que ele se torne completamente manifesto. Isso nos leva ao sexto tópico deste capítulo, que é a necessidade de cultivar prajna.


VI. O que é necessário praticar. Quando entendemos que as coisas são vazias, este entendimento precisa ser cultivado até que esteja presente todo o tempo. Como já foi explicado, a maneira de começar é estabilizar nossa mente. Praticamos a meditação de tranqüilidade para tornar a mente muito estável, muito maleável, para obter controle sobre a mente de uma maneira muito relaxada. Quando tivermos conseguido isso, aprendemos a deixar nossa mente repousar na vacuidade das coisas e chegar a experimentar a vacuidade tal como ela é. Uma outra maneira de descrever isso é meditar no Mahamudra de acordo com as instruções especiais transmitidas por Marpa.

Nessa forma de meditação, é simplesmente um caso de repousar na mente como ele é em si mesma. Como a mente é a própria expressão da verdadeira natureza de todos os fenômenos, se nos imergirmos nesse estado, a vacuidade de todas as coisas se torna evidente e também é evidente a qualidade da clareza da mente. Este aspecto de clareza da mente contém todas as qualidades virtuosas, ele contém a essência do Buddha que pode se desdobrar até se manifestar como a mente de Buddha, perfeitamente realizada. A técnica de meditação do Mahamudra, então, é deixar a mente repousar dentro de sua própria natureza. Através dessa prática, vamos estabilizar nosso entendimento da natureza da mente. O objetivo é desenvolver esse entendimento como um hábito. Quando ele se torna um hábito, teremos muito mais confiança na natureza das coisas e desenvolveremos uma convicção a respeito da forma como as coisas realmente são. Baseados nessa confiança e convicção, conseguiremos obter uma experiência direta deste significado. Quando esta experiência estiver presente, ela irá automaticamente eliminar todas as impurezas da mente, todas as faltas e defeitos da mente, e todos os fatores negativos que perturbam a mente. Será como quando as nuvens se desfazem no céu, o que acontece naturalmente. Da mesma forma, não haverá necessidade de lutar contra os defeitos e negatividades da nossa mente, nem será preciso passar por muitas dificuldades para removê-los. Tudo o que temos que fazer é mergulharmos no interior da verdadeira natureza da mente. Neste estado de grande paz e bem aventurança, todas as impurezas se dissolverão completamente, de maneira natural.

O que acontece quando alguém realiza a vacuidade? Realizar a vacuidade não significa que de repente passa a não existir mais nada, como uma completa aniquilação. Não é como se nada existisse, como quando alguém é pobre e não tem dinheiro. Ela é vacuidade, mas está intimamente unida com grande felicidade e claridade. Essa união da bem aventurança e claridade com a vacuidade é devido ao fato de que a vacuidade é, em sua essência, bem aventurança, no sentido de que é destituída de sofrimento e problemas, e é livre de todas as máculas. Essa é a verdadeira felicidade, além de todo o medo. Sob qualquer ângulo, não há mais razão para ter medo ou necessidade de apreender nada. É um estado de bem aventurança, mas também um estado de grande claridade. Vacuidade não significa que a mente se apague, mas sim que a mente atinge um estado muito lúcido e claro; é vacuidade com lucidez e clareza. Quando se realiza essa bem-aventurança, lucidez e clareza mental, este estado vai gradualmente nos levar ao ponto em que esteja completamente desenvolvido, exatamente como a mente pura e perfeita do Buddha, que tem sabedoria onisciente e perfeita bem aventurança.


VII. Resultados. Chegamos agora ao sétimo tópico do capítulo, que descreve os resultados da prática do Prajnaparamita. Existem dois tipos de resultados, os de longo prazo e os de curto prazo.

O resultado de longo prazo, ou definitivo, é que vamos nos livrar de todas as perturbações negativas da mente, e de todos os sofrimentos. Isso vai acontecer de maneira espontânea e natural através do entendimento da vacuidade. Ao mesmo tempo serão desenvolvidas todas as qualidades virtuosas presentes na mente. Iremos adquirir as qualidades de grande bem aventurança e clareza. Isso representa, de maneira definitiva, a realização da budeidade, a iluminação completa.

Além do resultado último, existem também resultados de curto prazo. Se alguém entende a vacuidade, essa pessoa vai ter automaticamente compaixão por todos os seres. Com o entendimento da vacuidade espontaneamente desenvolvemos a fé no Dharma e uma intenção muito forte de praticar e progredir no caminho do Dharma. De fato, mesmo os benefícios de curto prazo de entender prajna são inconcebíveis.





[1] O temo “ver” aqui não quer dizer ver fisicamente, mas se refere à falta de percepção da verdadeira natureza das coisas, o que nos leva a uma visão dualística das coisas, com um eu e aquilo que constitui um “outro” para ele. Dessa percepção dualística vem a sensação básica que classifica as coisas como boas e más, que dá então origem às emoções perturbadoras.

[2] Emoções perturbadoras são kleshas, palavra que em sânscrito significa dor, agonia e tormento. Isso foi traduzido como “aflições” que é palavra mais próxima para o que causa sofrimento. A palavra tibetana para kleshas, no entanto, é “nyon mong” e quase sempre se refere a paixão, raiva, ignorância, inveja e orgulho que são emoções realmente negativas ou perturbadoras, de forma que preferimos traduzi-la por emoções negativas ou perturbadoras, já que a palavra “aflições” (em inglês) implicam em algum tipo de incapacidade. O Grande dicionário tibetano, por exemplo, define nyon mong como “eventos mentais que impelem alguém a ações não-virtuosas e o levam a um estado de agitação".

[3] Os três reinos são o reino dos desejos (isso inclui os seis reinos dos infernos, fantasmas famintos, animais, humanos, semi-deuses e deuses), o reino da forma (deuses de forma sutil), e o reino sem forma (seres em elevados estados meditativos de absorção).

[4] Entretanto, isso não deve nos levar a pensar que apenas a sabedoria seja suficiente. O caminho do bodhisattva requer tanto o método (as primeiras cinco paramitas) quanto a sabedoria (a sexta paramita). Se um bodhisattva cultivar apenas a sabedoria sem o método, ele vai cair na paz nirvânica que é o resultado do caminho hinayana. Além disso, da mesma forma que uma pequena quantidade de madeira não pode produzir um grande fogo que queime por longo tempo, uma pequena acumulação de mérito não pode produzir grande sabedoria consciente. Então, uma grande sabedoria depende da acumulação de mérito obtida através da prática das primeiras cinco paramitas.

[5] Esta é a compreensão que os agregados aflitivos (skandhas) são impuros, têm a natureza do sofrimento, são impermanentes e sem uma natureza inerente.

[6] Existem muitas explicações do eu pessoal a que nos agarramos, mas basicamente uma pessoa é uma combinação da consciência e da continuidade dos agregados aflitivos. Esta continuidade está sempre se movendo e flutuando. Acreditando que essa pessoa seja uma entidade única e permanente, nós nos ligamos a ela, ficamos apegados e a tomamos como sendo o “eu”. Esse é o eu pessoal ou mente. Dele vem as emoções perturbadoras que produzem o karma (virtuoso, não virtuoso e neutro) e o resultado é o sofrimento. É, no entanto, importante entender que o que está sendo negado é a existência de um eu verdadeiro, permanente e definitivo, não o eu relativo ou personalidade. É por este motivo que ele é comparado a sonhos ou ilusões, porque mesmo não tendo existência verdadeira, ele aparece no nível relativo devido a certas condições e circunstâncias.

[7] Sujeito e objeto, ou aquele que percebe e aquilo que é percebido, são interdependentes, um não pode existir sem o outro, eles surgem simultaneamente. Sendo assim, para confirmar a existência do sujeito ou daquele que percebe, precisamos confirmar a existência de um objeto, ou daquilo que é percebido. Como não somos capazes de confirmar a existência de qualquer objeto, o resultado lógico é que não pode haver um sujeito realmente existente. O fato de que o relacionamento de sujeito e objeto é de dependência, através de surgimento simultâneo, é também prova de sua vacuidade, porque alguma coisa que realmente existe não seria dependente de alguma outra coisa para que ela surgisse e permanecesse.

[8] O que é apresentado aqui é a definição do bem conhecido caminho budista, o Caminho do Meio. É do meio porque evita todos os extremismos filosóficos, em particular o dos eternalistas (aqueles que acreditam que as coisas existem verdadeira e permanentemente), e dos niilistas (aqueles que acreditam que tudo é apenas vazio e não acreditam no karma e nas aparências relativas). São evitados estes extremos e a fixação intelectual em definir o que está além ou é inadequado para ser definido. O resultado é a realização direta e clara da verdade.



Trecho do comentário do "O Ornamento da Preciosa Liberação - Gampopa" por Thrangu Rinpoche; Editora ZCG.





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