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A Canção Sobre a Natureza Sem Sentido do Samsara

A Canção Sobre a Natureza Sem Sentido do Samsara

Até este ponto, Karma Tchagme completou a explicação de três das quatro práticas preliminares como base para entrar em retiro solitário: precioso nascimento humano, impermanência e morte e causa e resultado. Agora ele discursa o quarto, que é o samsara sem sentido.

Existe uma boa razão para considerar a falta de sentido do samsara. Todo mundo sabe que se você quiser atirar uma flecha num alvo, você precisa ver o alvo muito claramente. Se você não sabe onde está o alvo, é muito improvável que o acerte. Contudo, se você consegue enxergá-lo e faz um grande esforço, é bem provável que consiga acertar na mosca. Da mesma maneira, apesar de sabermos que a ideia da prática do Dharma é superar a causa do sofrimento, até nós sabermos o que está realmente causando o sofrimento, nós nunca teremos sucesso em nossa prática. Precisamos ver o alvo claramente.

Colocando isto de uma outra maneira, se você está sofrendo de uma doença, você deve primeiro identificar os sintomas e então descobrir através de um bom médico exatamente o que está causando os sintomas. Tendo identificado os sintomas e a causa da doença, você então irá aprender quais ações evitar para não exacerbar a condição, como comer certas comidas ou realizar certas atividades. Finalmente, você irá se medicar para se curar, para superar sua doença completamente. O principal motivo pelo qual você toma o medicamento é para superar a dor associada com a doença e experimentar a felicidade que é se ver livre da doença ou daquele tipo de sofrimento. Da mesma maneira, quando praticamos o Dharma para superar um sofrimento, nós primeiro devemos entender a causa do sofrimento, e para fazer isso, devemos primeiro entender a falta de sentido do samsara. Uma vez que entendemos que a causa do nosso sofrimento são as emoções aflitivas (kleshas) e o karma, estamos mais motivados a aplicar o antídoto, que é o Dharma.

Muitos estudantes se dedicam à prática do Dharma por muito tempo, mas ainda não sentem resultados positivos. Frequentemente se sentem desencorajados, pensam que não há benefício em suas na prática e as vezes desistem de tudo. Quando perguntamos a estas pessoas sobre sua prática, vemos que o problema é que elas não sabem o porquê de estarem praticando, nem sabem a maneira apropriada de praticar. Se não sabemos como ou por que praticamos, nunca atingiremos um resultado efetivo, não importa quanto tempo nos dediquemos à prática.

Por todas essas razões, Karma Tchagme apresenta aqui a explicação da natureza sem sentido do samsara. Seu propósito é nos ajudar a entender claramente por que precisamos praticar sem uma mente distraída ou confusa. Karma Tchagme começa dizendo para seu discípulo “Escute, Tsondru Gyamtso, pense devidamente. Se você pensar apropriadamente sobre os sofrimentos do samsara, sua mente não será pacífica durante o dia e você não conseguirá dormir bem a noite. Se você realmente pensar devidamente sobre os sofrimentos do samsara, verá que o samsara é como um oceano sem limites. Nós, os seres dos seis reinos, caímos nesse oceano sem fim, e nenhum de nós escapa de suas ondas revoltas. Tendo caído nesse oceano sem fim, todos experimentamos o sofrimento do nascimento, o sofrimento de envelhecer, o sofrimento das doenças e o sofrimento da morte. Estes sofrimentos são como as ondas dos oceanos, que nos atingem constante e inevitavelmente.”

Não somente estamos sujeitos aos quatro tipos de sofrimento, estamos constantemente criando novas causas para mais sofrimento através de nossas ações no oceano do samsara. Quando praticamos ações não virtuosas, estamos criando causas para renascimento em um reino inferior: o reino dos infernos, o reino dos fantasmas famintos ou o reino animal. A força de nosso karma negativo nos puxa para baixo, como um jacaré puxando um animal para debaixo d’água. Nós tentamos escapar, tentamos sair, mas a força de nosso karma é tão poderosa que somos puxados para baixo até as profundezas do sofrimento. Esta é a verdadeira natureza do samsara.

Como nos libertamos? Como escapamos deste oceano de sofrimento? Primeiro precisamos encontrar alguém que nos mostre o método para escapar e então devemos buscar refúgio. Mas apenas isso não é o suficiente. A motivação e encontrar um autêntico professor são os passos iniciais, primários, mas para poder experimentar a liberdade verdadeira, precisamos manter com grande clareza e precisão quaisquer preceitos ou votos que fizemos, tais como os preceitos do refúgio, preceitos laicos e preceitos do bodhisattva. Esses preceitos são como nosso barco no oceano do samsara. Se você tem um barco forte, então você tem a possibilidade de experimentar liberação do oceano do sofrimento. Se esse barco tem muitos furos e rachaduras, você não tem garantia de chegar a seu destino em segurança. Não há garantia que você irá experimentar a liberação. Nesse sentido, a pureza de seus preceitos se torna de maior importância, equivalente a ter um barco muito forte e apropriado.

Mesmo que você tenha um barco forte e perfeito, se você não tem ou não usa os remos, o barco irá apenas para onde as ondas o levarem, flutuando sem direção. Você precisa dos remos, que nessa analogia são equivalentes às instruções do Lama. Além disso, mesmo que você tenha os remos, você ainda precisa trabalhar constantemente e com muito esforço para guiar o barco para seu destino pretendido. As instruções da prática de meditação de um autêntico professor se tornam os remos do barco. É você quem deve fazer um esforço real e consistente para se liberar do oceano do sofrimento. A diligência e o esforço são totalmente por sua conta.

Nós podemos perguntar “Qual o propósito de nos causar ansiedade pensando no sofrimento do samsara? Qual o propósito de pensar tanto a respeito disso que não conseguimos dormir durante a noite e não conseguimos nos divertir durante o dia? Por que não relaxar e aproveitar a vida?” Quando as pessoas dizem isso, é porque não acreditam que há uma experiência além dessa experiência atual. Eles não entendem o imenso sofrimento dos reinos inferiores.

Como descrito anteriormente no texto, os mais baixos dos três reinos inferiores são os reinos infernais. No reino do inferno quente a pessoa experimenta a sensação da dor física de ser queimado por água fervente e lava é empurrada em sua garganta. Essa experiência se repete continuamente, não por apenas um ano ou dois, mas milhares e milhares de anos. Enquanto estamos aqui, aproveitando a vida, se uma pequena chama de fogo cai sobre nós, imediatamente tentamos apagá-la, pois a dor do fogo queimando nossa pele seria muito intensa. Imagine a dor que seria ter todo o seu corpo queimado. Imagine todo o seu corpo sendo submerso em água fervente. Considere também o inferno frio. No inverno nós colocamos muitas camadas de roupas para nos proteger da dor causada pelo frio. No inferno frio você está completamente nu num local onde todo o seu corpo se racha. Não há ninguém para te salvar. Não há ajuda, e novamente, você sente esse doloroso sofrimento por centenas e centenas de anos. Mesmo que nos faça nos sentir desconfortáveis, nós devemos realmente pensar sobre a experiência de estar nos infernos. Se o fizermos, iremos fazer o máximo que podermos para evitar cair em locais de sofrimento tão intenso.

O próximo reino é o dos preta, ou reino dos fantasmas famintos. Se imagine a si mesmo, quando chegamos em casa e dizemos “Não comi nada o dia inteiro. Estou com muita fome. Estou faminto.” Se não comermos ou bebermos muita coisa em um dia, quando chegamos em casa achamos que devemos comer tudo que tem na geladeira. Imagine que você está em um reino no qual, por centenas e centenas de anos, você não tem nada para comer ou beber. A fome e a sede são as mesmas vividas aqui, mas a possibilidade de obter comida e água são completamente diferentes. Aqui você pode conseguir o que precisa, mas pense em como você se sente após um dia sem comer ou beber e multiplique por centenas de vezes. O sofrimento é inimaginável.

Considere também o reino animal. Os animais vivem em constante estado de medo e nervoso. Cada som que eles escutam, cada ação a sua volta, é intensamente percebida como potencial ameaça. Eles nunca experimentam um estado de verdadeira calma ou descanso. Estão constantemente esperando um ataque de outro animal, e normalmente por uma boa razão. Seria uma dolorosa experiência ter que viver nossas vidas dessa maneira, em consistente, implacável medo e ansiedade.

Seres do reino dos semideuses, ou asuras, vivenciam centenas e centenas de anos em constantes disputas e brigas. Qualquer felicidade que podem sentir por suas posses é totalmente negada por seu orgulho e apego e a briga resultante entre eles. Não há um único momento de paz nesse reino.

Finalmente, considere o reino dos deuses, que também é um reino samsárico. Experimenta-se o renascimento no reino dos deuses por ter acumulado karma virtuoso por meio de ações positivas, mas essas ações foram feitas com motivações obscuras, isto é, por benefício pessoal e sem saber a maneira correta de dedicar essa virtude. Assim, embora exista felicidade no reino dos deuses, o karma que causa esta felicidade em algum momento irá acabar e o sofrimento resultante será imenso. Por exemplo, pense como seria estar envolvido em uma enorme batalha legal, mas o seu oponente vence e você, consequentemente, se torna extremamente zangado e deprimido por causa da sua perda. Agora pense sobre os deuses no final de suas vidas no reino dos deuses. Tudo que uma vez eles já tiveram agora será perdido para sempre. Não apenas isso, mas porque eles são onipotentes, eles começam a perceber que não serão mais deuses. Eles podem ver claramente o final de suas vidas como deuses e seu renascimento em um reino mais baixo. Ver tudo o que vão perder, sua dor e sofrimento se torna então muito intensa.

A partir destas descrições, podemos ver que o sofrimento dos seres no reino do inferno, no reino dos fantasmas famintos e no reino animal são maiores do que o que realmente conseguimos compreender. Seres nos reinos humano, semideuses e deuses, podem experimentar alguma felicidade comparado com os três reinos mais baixos, mas a felicidade vem misturada com emoções aflitivas, criando mais infelicidades. Isso é como ter uma comida muito nutritiva que faria muito bem a sua saúde, mas nós colocamos veneno nela. A comida é nutritiva, mas por causa do veneno que adicionamos, a comida agora é muito perigosa para nós e potencialmente causará muitos problemas e dores. O veneno que adicionamos nos reinos superiores é o nosso apego. Nos reinos humano, semideus e dos deuses, podemos experimentar alegria e felicidade, mas ficamos apegados a isso, e por esse apego, desenvolvemos outras emoções como raiva, ciúmes e orgulho. Para proteger nossa felicidade e para tentar criar mais felicidade, nós nos envolvemos em mais e mais emoções aflitivas, que são como adicionar veneno no que já foi bom antes. O resultado cármico é ter uma experiência contínua de diferentes níveis de sofrimento nos seis reinos.

Quando realmente olhamos para o intenso sofrimento dos reinos, nós perguntamos “Quem criou um sofrimento tão profundo? Quem é o criador desses reinos?”. A resposta é “nós mesmos”, ou – para ser mais preciso- nossas emoções aflitivas (kleshas). Por exemplo, o karma que você acumulou através de ódio ou raiva intensos te leva a experimentar os sofrimentos do reino do inferno. Estes ódio e raiva vêm de você, de suas próprias emoções aflitivas, e não de um criador externo. Se você acumulou karma através de tremenda ganância e avareza, você irá experimentar o sofrimento do reino dos fantasmas famintos. Se você age de um jeito que acredita ser virtuoso, mas é na verdade estúpido, a força e o karma dessa estupidez resultam no renascimento no reino dos animais. Mesmo que você esteja praticando o Dharma, se você ficar com ciúmes cada vez que alguém praticar melhor ou obtém melhores resultados, você acumulará karma para vivenciar o sofrimento do reino dos semideuses. Finalmente, mesmo que você pratique o Dharma e grande virtude, se você tem um sentimento de orgulho ou arrogância sobre isso e se você se preocupa unicamente com suas necessidades pessoais, você então acumula karma para experienciar o reino dos deuses.

Em todos esses casos não há um criador externo dos seus sofrimentos. Ao contrário, por participar de certas ações, você acumulará os resultados delas. É infalível. É definitivo. Uma vez que você entende isso, você sabe que é absolutamente necessário engajar-se num Dharma livre de todas essas emoções aflitivas. Sente calmamente e pense honestamente sobre suas ações, do primeiro momento que você se lembra até agora. Considere em quantas atitudes positivas e em quantas atitudes negativas você se envolveu. Pode ser doloroso lembrar todas as negativas, mas você verá claramente que estamos constantemente nos envolvendo em emoções aflitivas e ações negativas.

Juntamente ao karma acumulado nesta vida, nós também temos emoções aflitivas (kleshas) de inúmeras vidas anteriores, então temos o karma resultante disso. Mesmo que você pense “Bem, não me dei tão mal nessa vida.”, você deve saber que em incontáveis vidas anteriores nós todos participamos de muitas ações negativas. Não desista simplesmente pensado “Oh, eu acumulei tanto karma ruim. Não há esperança para mim.”. O acúmulo de karma negativo não traz vantagem nenhuma a não ser por uma única característica positiva. Se você reconhece suas ações negativas e as confessas sinceramente, então o acúmulo do karma resultante pode ser completamente desenraizado e purificado. Esse é o único atributo positivo do karma negativo: pode ser purificado e totalmente negado.

Como é possível purificar o karma negativo? Se você o reconhece e sinceramente se arrepende de suas ações e faz o compromisso de não as repetir no futuro, purificação é possível. Meras palavras não são o suficiente; você deve fazer um esforço real. Se você está muito acostumado e apegado a suas ações negativas, pode não ser possível se livrar delas todas ao mesmo tempo. Contudo, se você fizer um esforço consciente e contínuo, então após certo tempo, quando você examinar suas ações, você vai perceber que você está obtendo êxito em reduzir e finalmente superar emoções aflitivas como ciúmes, ganância e raiva. É uma boa ideia que, ao final de cada dia, antes de ir dormir, examine seu comportamento daquele dia. Quando você reconhecer suas ações negativas, gere arrependimento e prometa não repeti-las no futuro. Quando você reconhecer as ações positivas que realizou naquele dia, alegre-se e dedique a virtude para o benefício e a iluminação de todos os seres sencientes. Quando você faz isso, a virtude se torna indestrutível porque você a liberou e a dedicou para o benefício de todos os seres sencientes.

Por favor lembre-se que quando falamos sobre ações negativas, nós constantemente pensamos apenas em ações físicas e verbais. Contudo, ações negativas também acontecem na mente, como pensamentos negativos. Portanto, quando você revisar os eventos do seu dia, você pode concluir “Bem, fisicamente eu não me envolvi em nenhuma ação negativa ou violenta e verbalmente eu não falei nenhuma palavra áspera.”. Mas sua mente naquele dia teve pensamentos negativos de posse, raiva, ganância e assim por diante. Essas também são ações negativas. O elemento mais importante em superar as aflições que resultam no acúmulo de karma negativo é estar totalmente ciente e atento de seu estado mental.

O Buda deu 84,000 coleções de ensinamentos, os quais são dedicados a pacificar a mente e superar emoções aflitivas. Por isso é dito que a essência dos ensinamentos do Buda é “Não cometa uma única má ação. Pratique a virtude completamente.”. Quando o Buda diz “Não cometa uma única má ação” o significado é muito claro. Ele quer dizer evitar qualquer ação que surja das emoções aflitivas. “Pratique a virtude completamente.” Nos instrui a praticar bondades amáveis e compaixão muito sinceramente, com todo o nosso coração. Ele quer dizer que devemos substituir todas as ações negativas pelas positivas. A terceira linha do ensinamento do Buda é “Pacifique sua mente completamente.” Em outras palavras, experiencie a pacificação de sua mente livre das emoções aflitivas. O ensinamento termina dizendo que se um indivíduo está fazendo tudo isso, então ele ou ela é um “verdadeiro praticante do budismo.” Essas quatro linhas são a essência dos ensinamentos do Buda. Elas claramente dizem quem é considerado um verdadeiro praticante do budismo. Se a pessoa é um monástico (monge ou monja) ou um chefe de família (leigo) não faz diferença. O que faz a diferença é a habilidade da pessoa de “praticar a virtude completa” e “pacificar sua mente completamente”. Esta pessoa é uma verdadeira praticante do budismo.

Isso conclui a sessão apresentada pelo grande mestre Karma Tchagme, que é chamado de Bhikshu Raga Asya, para seu estudante, Tsondru Gyamtso, no Ano do Cavalo. O ensinamento foi escrito por seu discípulo, Tsondru Gyamtso, que termina com sua própria dedicação. “Que estes ensinamentos possam beneficiar muitos seres sencientes .”

~Extraído dos ensinamentos de Khenpo Karthar Rinpotche (03/02/1924 -06/10/2019) sobre o texto " Dharma de Montanha" de Karma Tchagme Rinpotche (1613-1678).

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