A verdade do sofrimento
Esse ensinamento está contido nas Quatro Nobres Verdades em que Buda enfatizou como deve ser cultivada a Visão do Meio e como praticar o Caminho do Meio. A primeira das Quatro Nobres Verdades é o sofrimento, que é a tradução usual da palavra sânscrita duhkha (em páli, dukkha). Essa tradução não significa que o Buda não tenha reconhecido a existência de felicidade ou contentamento na vida. A ideia que ele queria passar era a de que há felicidade e tristeza no mundo; mas o motivo por que tudo que experimentamos na vida diária é considerado duhkha é que, mesmo quando obtemos algum tipo de felicidade, ela não é permanente; ela está sujeita a mudanças. Assim, a não ser que enxerguemos essa verdade e compreendamos o que realmente consegue ou não nos dar felicidade, a experiência de insatisfação persistirá.
Normalmente achamos que nossa felicidade depende de circunstâncias e situações externas e não de nossa própria atitude interna em relação às coisas, ou em relação à vida em geral. O Buda dizia que a insatisfação faz parte da vida, ainda que estejamos buscando a felicidade e mesmo que consigamos encontrar uma felicidade temporária. O próprio fato de ser temporária significa que, mais cedo ou mais tarde, passará. Assim, o Buda ensinou que, a menos que compreendamos isso e vejamos quão difundida é a insatisfação ou duhkha, é impossível começar a procurar felicidade real.
De acordo com o Buda, mesmo quando pensamos estar tentando encontrar a felicidade real, não conseguimos ser eficazes porque não temos a atitude correta e não sabemos onde procurá-la. O Buda não era contra a felicidade; pelo contrário, ele nos ofereceu um método para descobrir como superar essa sensação de insatisfação que faz parte da última Nobre Verdade.
A chave para a compreensão da verdade do sofrimento é o que o Buda chamou de as "três marcas" de tudo o que existe. Todos os fenômenos (1), disse ele, estão impregnados destas três marcas: a impermanência (anitya), a insatisfação ou sofrimento (duhkha) e a insubstancialidade (anatmananatman anatman - ausência do eu). - poderemos acreditar que existe algum tipo de essência ou substância permanente nas coisas, ou na personalidade e, por causa dessa crença, geramos delusão e confusão na mente. De acordo com o Buda, se não compreendemos como os fenômenos condicionados são marcados por esses três aspectos, não seremos capazes de compreender a primeira Nobre Verdade. Podemos nos esforçar ao máximo para não encarar o fato de que tudo é contingente e transitório – podemos tentar nos esconder desse fato, e até inventar todo tipo de teoria metafísica de uma realidade imutável, permanente e substancial para evitar essa efemeridade generalizada. Além disso, se não compreendermos que os fenômenos condicionados são insatisfatórios, não pensaremos em restringir a super gratificação sensorial que nos faz perder o centro e mergulhar nas preocupações mundanas, fazendo com que nossa vida seja governada pela cobiça, ânsia e apego. Todas essas coisas perturbam a mente. Se não compreendermos que tudo é insubstancial –
A origem do sofrimento
A segunda Nobre Verdade é a origem do sofrimento. Uma vez percebida a existência de sofrimento e insatisfação, devemos descobrir de onde vem esse sofrimento. Sua origem é interna ou ele resulta de algum tipo de situação ou condição externa? O Buda ensinou que, quando começarmos a nos examinar e a ver como reagimos às situações, como agimos no mundo e como nos sentimos sobre as coisas, perceberemos que a causa do sofrimento é interna. Isso não significa que condições sócio-econômicas externas não criem sofrimento, mas o principal sofrimento que nos aflige é criado por nossa própria mente e atitude.
Segundo o Buda, se quisermos superar a insatisfação que está intimamente ligada à nossa experiência de sofrimento, precisaremos enfrentar a ânsia, a avidez e o apego – formas exageradas de desejo. Ora, algumas pessoas pensam que os budistas encorajam a ideia de erradicar totalmente o desejo, mas não foi isso que ensinou o Buda. Ele disse que devemos tentar superar formas excessivas e exageradas de desejo que se manifestam, como ânsia, avidez etc., porque elas pioram a nossa condição, aumentando a sensação de insatisfação e descontentamento. São os tipos mais obsessivos de desejo que, segundo o Buda, devemos tentar superar. Enquanto tivermos essas fortes formas de desejo, elas estarão sempre acompanhadas de aversão, ódio, ressentimento e outros sentimentos semelhantes pois, quando não conseguimos obter o que queremos, ficamos frustrados, zangados e ressentidos. Ou se encontramos quaisquer obstáculos à satisfação de nosso desejo, queremos eliminá-los, erradicá-los ou atacá-los. Podemos até recorrer à violência e embuste a fim de satisfazer nossa cobiça e ânsia. Assim, o Buda afirmou que devemos lidar com essas formas extremas de desejos mas não devemos querer erradicar totalmente o desejo porque também podemos usá-lo de várias maneiras positivas.
O objetivo: o cessar do sofrimento
A terceira Nobre Verdade é o objetivo. Primeiro descobrimos sobre a condição humana e como ela está impregnada de uma sensação de insatisfação. Depois, examinamos a causa dessa insatisfação e, em seguida, olhamos para o objetivo, que é atingir o nirvana. Há quem ache que o nirvana é alguma espécie de realidade absoluta, transcendente e espiritual. Mas o Buda revelou que se pode atingir o nirvana ainda neste mundo; trata-se do "nirvana com sobra". Também se pode atingir o nirvana na hora da morte, que se denomina "nirvana sem sobra". Assim, é possível atingir o nirvana durante esta própria vida. Alcançar o nirvana faz com que a mente não seja mais afligida pela delusão e por problemas emocionais. A mente torna-se tranquila, e a experiência de felicidade não depende mais de situações e circunstâncias externas. Portanto, nossa reação aos acontecimentos é menos extrema e, por isso, conseguimos preservar uma sensação de tranquilidade e paz, mesmo diante de circunstâncias adversas.
Isso acontece porque quem atingiu o nirvana superou as três delusões básicas: a atração, a aversão e a ignorância. Quando a mente deixa de ser governada pelas fortes reações emocionais da atração e aversão, podemos manter a paz e tranquilidade mesmo quando as coisas não estão dando certo. Conservamos uma sensação de fortaleza e enfrentamos os fatos com coragem.
O caminho: a saída do sofrimento
Tendo percebido o objetivo – obter uma felicidade permanente, não baseada em condições mutáveis externas – devemos descobrir como nos dedicamos a atingir esse objetivo. É isso que a quarta Nobre Verdade explica. A quarta Nobre Verdade é o caminho, e essa é a essência da prática budista, Conhecida como Nobre Senda Óctupla, está voltada para o desenvolvimento de três qualidades de um indivíduo: sensibilidade moral, meditação ou mente concentrada e sabedoria. Pela prática da sensibilidade moral, tornamo-nos indivíduos melhores, capazes de superar nossas tendências egocêntricas. Tornamo-nos mais compassivos e sensíveis às necessidades dos outros. A prática da meditação torna nossa mente mais focalizada, mais flexível e mais atenta, e isso, por sua vez, dá origem à sabedoria.
A Nobre Senda Óctupla consiste na Compreensão Correta, Pensamento Correto, Palavra Correta, Ação Correta, Meio de Vida Correto, Esforço Correto, Atenção Correta e Concentração Correta. As primeiras duas verdades da Compreensão Correta e Pensamento Correto correspondem ao desenvolvimento da sabedoria. Palavra Correta, Ação Correta e Concentração Correta – estimulam nossas capacidades meditativas.
A Compreensão Correta significa entender a visão budista que, como vimos, é a visão do meio entre o eternalismo e o niilismo. Segundo o Buda, sabendo como o mundo surge devido a causas e condições, não caímos no extremo do niilismo. O outro aspecto da visão do meio é saber como tudo cessa, quando causas e condições cessam. Portanto, não caímos no extremo da visão substancialista, essencialista ou eternalista porque percebemos que, embora as coisas passem a existir mediante causas e condições, nada que existe no plano físico ou mental persiste quando essas causas e condições não estão mais presentes.
O Pensamento Correto está associado a ver como nossos pensamentos e emoções estão estreitamente relacionados, e como entregar-se a formas negativas de pensamento leva ao desenvolvimento de emoções negativas como ódio e ciúme. De modo oposto, pensar de maneira positiva tem um efeito sobre nossas emoções, efeito pelo qual começamos a nos tornar mais carinhosos, mais atenciosos e mais sensíveis em relação aos outros.
Palavra Correta significa que, sem estar ciente – e normalmente não estamos – não sabemos o que estamos dizendo ou fazendo. Inadvertidamente nos entregamos a todo tipo de fala negativa como mentira, calúnia, fala arrogante e fofoca. É importante tornarmo-nos cientes de nossa fala porque o que dizemos tem uma influência direta sobre o tipo de pessoa que nos tornamos. Se vivemos usando palavras duras, naturalmente ficamos muito agressivos.
Ação Correta relaciona-se a ver como o que fazemos é benéfico ou prejudicial a nós e aos outros. Isso requer o desenvolvimento de habilidade na maneira como agimos no mundo. Em vez de pensar que já sabemos definitivamente quais as ações são certas e erradas, é importante examinar de perto a forma como agimos. Não devemos simplesmente confiar em algumas regras ou normas sociais preestabelecidas; pelo contrário, devemos observar como nós, como indivíduos, agimos no mundo e quais os efeitos de nossas ações sobre nós, o meio ambiente e outras pessoas.
A respeito do Meio de Vida Correto, o Buda disse que não há nada de errado em ganhar dinheiro e cuidar da família, mas precisamos saber como ganhar a vida sem prejudicar os outros ou a nós mesmos. Assim, por exemplo, não nos engajamos em uma ocupação que envolva a crueldade em relação aos animais ou seres humanos, ou que obrigue a enganar ou infligir dor física ou mental aos outros. Se essas coisas estiverem envolvidas, devemos abrir mão dessa forma de meio de vida.
O Esforço Correto tem quatro aspectos. O primeiro esforço está ligado à prevenção: fazer um esforço pela meditação para assegurar que não cedemos a pensamentos e emoções prejudiciais, e tentar impedir que eles surjam na mente. Pensamentos prejudiciais têm origem no apego, na aversão e na ignorância. O segundo esforço é reduzir os pensamentos e emoções prejudiciais já surgidos na mente. O terceiro esforço é desenvolver pensamentos e emoções saudáveis, e isso também se faz na meditação. Mesmo que ainda não estejam presentes, devemos nos esforçar por despertá-los. O quarto esforço é cultivar ainda mais esses pensamentos e emoções saudáveis já surgidos na mente.
A Atenção Correta está associada a tornarmo-nos mais atentos aos nossos pensamentos, emoções, sentimentos, fala e comportamento na meditação. Tornamo-nos mais conscientes daquilo que experimentamos, seja lá o que for, e mais atentos também, enxergando melhor o funcionamento da mente e como ela influencia nossas ações na vida diária.
A Concentração Correta também se desenvolve com a meditação. A mente torna-se mais focalizada e menos perturbada. Mesmo que ouçamos, vejamos ou pensemos em algo, a mente não se distrai, mas continua capaz de manter um estado de concentração.
Essa é a Nobre Senda Óctupla, que conduz o indivíduo dessa condição de samsara (2) à conquista do nirvana, ou iluminação. Como podemos ver, as Quatro Nobres Verdades são tanto descritivas como prescritivas. Elas descrevem a condição em que estamos, que tipos de condições prevalecem e quais são os problemas. Elas também prescrevem como melhorar nossa situação, superar nossa sensação de insatisfação e conquistar a iluminação seguindo a Nobre Senda Óctupla e seu treinamento de moralidade, meditação e sabedoria.
Conforme eu disse, as Quatro Nobres Verdades são a essência de todos os ensinamentos de Buda. Sem compreendê-las, não podemos prosseguir. Todas as interpretações posteriores dos ensinamentos budistas originais baseiam-se na compreensão das Quatro Nobres Verdades. Pode haver diferentes formas de compreender como exercitar a meditação, sabedoria ou moralidade, mas não há desacordo quanto à importância de compreender as Quatro Nobres Verdades. Todas as outras práticas se baseiam nesses ensinamentos fundamentais do budismo, ou os desenvolvem.
(1) "Fenômenos condicionados" ( sânscrito, samskrita; páli, sankhate) significa que tudo que existe é mutuamente condicionado devido a causas e condições: as coisas passam a existir, persistem por algum tempo e depois se desintegram, revelando assim a natureza transitória do mundo empírico.
(2) Samsara (sânscrito) é existência cíclica, na qual – devido às influências corruptoras das delusões mentais do ódio, desejo e ignorância – as criaturas sensíveis são obrigadas a vagar de uma forma de vida para outra sem descanso até encontrarem o caminho espiritual.
Trecho do livro "A Essência do Budismo, de Traleg Kyabgon Rinpoche; Editora Mandarim, 2002.
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