Enfrentando o desafio de aprofundar a prática enquanto se leva uma vida ativa.
O grande Jamgon Kongtrul Lodro Thaye, em vários de seus escritos, condena praticantes que acreditam que podem mergulhar nos “dharmas mundanos” e, ao mesmo tempo, praticarem os pontos essenciais do caminho. Ainda assim, uma autoridade tão importante quanto o mahasiddha Tilopa lembrou ao seu discípulo Naropa que não eram as aparências do mundo que o escravizavam, mas seu apego a elas. Podemos encarar estas afirmativas como defesas do caminho monástico e do caminho do mahasiddha, respectivamente.
A tensão aparente entre estes dois enfoques é uma fonte de grande preocupação e auto questionamento para muitos budistas ocidentais. Nosso problema parece ser que não é tão fácil aprofundar nossa prática apenas através da compreensão de que (ou mesmo de como) nosso próprio apego nos escraviza. Mesmo assim o monasticismo ou retiro em cavernas não são considerados opções viáveis ou atraentes pela maioria das pessoas que foram criadas e permanecem imersas na sociedade e cultura ocidentais.
Para aumentar a dificuldade, muitos dos grandes mahasiddhas do oriente entraram neste caminho apenas depois de carreiras longas e notáveis como estudiosos e representantes das linhagens da vinaya. E, enquanto outros conseguiram encontrar a essência dos ensinamentos através de um choque traumático, um choque deste nível é algo que poucos de nós estamos preparados para enfrentar.
Todos nós sabemos que o grande Trungpa Rinpoche teve profundo entendimento deste dilema, e empreendeu a criação de uma estrutura social e cultural para uma sociedade sadia, uma sangha ocidental perfeitamente integrada ao restante da sociedade ocidental. Sabemos também que este nobre experimento beneficiou milhares e milhares de estudantes, e que este experimento continua sendo realizado.
É também claro que aqueles que não têm uma fundação firme nas quatro contemplações que reorientam a mente para o dharma, não sentem tristeza sincera pela situação de todos os seres sencientes e não entendem a natureza da consciência que permeia, mas não é maculada pelos pensamentos, vão ser continuamente frustrados e desapontados pelos resultados de sua prática combinada com os afazeres diários. Aparentemente poucos, ou nenhum praticante tântricos ocidental conseguiu muita liberação de seus obscurecimentos através de longas horas de trabalho pesado, bebida em excesso, relacionamentos e filmes.
Para não pintar uma imagem muito unilateral, é talvez igualmente claro que quando, para benefício da prática, tentamos nos isolar demais das experiências e desafios da vida desta sociedade saturada, podemos facilmente chegar a nos sentir desequilibrados, quando não incapazes de lidar com as situações que enfrentamos. Não é um meio hábil, já que há pouco apoio em nossa sociedade para yogues com unhas compridas e sujas. Nossa visão é de que mendigar é apenas mendigar, não algo nobre. Somos todos desafiados a nos tornarmos verdadeiramente hábeis em nos mantermos integrados ao tecido da sociedade por mais devotados que formos à prática; a nos tornarmos, em outras palavras, minisiddhas.
Através dos anos, muitos estudantes do dharma expressaram para mim seus sentimentos de que suas atividades cotidianas são obstáculos, por roubarem seu tempo e drenarem suas energias que seriam devotadas à prática. O que cada um de nós que já teve esta sensação quer na verdade dizer, eu suspeito, é que nos sentimos incapazes de trabalhar eficientemente com nossas experiências enquanto praticamos estas atividades. Em vez disso, caímos sob o poder da distração e dos padrões costumeiros de pensamento e fala. Ficamos tão envolvidos conceitualmente e emocionalmente em nossas vidas atarefadas que acabamos por sentir um anseio por libertação, por distração para compensar o esforço e tensão.
Acontece que enquanto estamos presos neste tipo de ciclo, pouco benefício pode nos trazer uma correta orientação sobre meios hábeis de usar as situações da vida diária para incrementar nossa experiência de percepção, devoção, compaixão e visão pura. Sabemos que temos que confiar neste ensinamento, mas por algum motivo não conseguimos segui-lo.
O que podemos fazer é tomar nosso sentimento de desânimo e usá-lo a nosso favor, através do cultivo e reconhecimento daquilo que está em seu cerne. Se nos sentimos desencoraja-dos, isto significa que ao menos nos lembramos de que existe algo importante que nos esquecemos de fazer. Assim, a qualidade da ‘lembrança’ – um ponto chave da prática – já está presente. Este é um detalhe simples, mas crucial. Se queremos nos lembrar de usar as experiências da vida cotidiana para melhorar e aprofundar a prática, temos que primeiro nos lembrar disso. Podemos chamar esta etapa de lembrança. Lembrança significa nos distanciarmos de nossa própria mente, de novo e de novo. Como se fosse para registrar o que nela acontece. Isto é, previsivelmente, muito semelhante ao que fazemos a todo momento quando aplicamos a percepção à prática básica da meditação de acalmar a mente (shamatha).
Antes de conseguirmos sustentar uma continuidade na prática mesmo quando estamos fora de um ambiente de prática isolado, precisamos reforçar nossa capacidade de apreciação e nossa convicção de que podemos (e devemos) praticar a cada momento. Isto é simplesmente construir um hábito de lembrança durante todas as atividades ou, como costuma ser dito nos manuais de meditação, manter uma continuidade de percepção entre as sessões de meditação formal e a pós-meditação – o resto de nosso tempo.
Uma vez que nos ‘lembramos de nos lembrar’ de aplicar os meios hábeis que aprendemos às situações da vida cotidiana, já temos metade do caminho percorrido. Nossa caixa de ferramentas está aberta, e nossa mão já está nela. É simples escolher a ferramenta correta, e podemos aprender rapidamente de um professor qualificado.
É por isso que o primeiro dos famosos “quatro dharmas de Gampopa” é a aspiração de que nossa mente siga o caminho do dharma. Só quando nossas mentes seguem o dharma, o dharma segue o caminho e o caminho começa a remover nossa confusão é que podemos verdadeiramente começar a reconhecer o relacionamento entre as meras aparências e a verdadeira natureza de nosso ser. Neste ponto não ansiamos mais equivocadamente por realização através de nosso relacionamento com as formas das aparências.
Mas o que fazemos neste meio tempo, para não gastarmos esta vida humana preciosa em atividades que já sabemos, ao menos intelectualmente, que não vão nunca nos proporcionar satisfação duradoura? Quando sabemos que nosso objetivo mais profundo na vida é lutar para conseguir a realização para benefício de todos com quem entramos em contato? Quando não encontramos mais satisfação em deixar estas nobres aspirações permanecerem adormecidas?
Temos que nos transformar em minisiddhas operantes, minisiddhas funcionais. Mas o que nos permite chegar a isso, agarrar a qualidade preciosa da lembrança e manter a resolução de aplicá-la?
Para chegar a esse ponto temos que compreender a estrutura básica do sofrimento, suas causas e o caminho que leva para além do sofrimento; entender que nossos klesas (estados mentais perturbados) não são nossos amigos nem conselheiros confiáveis; ter consciência do quanto é extraordinário cada vez que inspiramos novamente como um ser humano saudável e consciente; e confiar nosso bem estar às fontes de refúgio.
Se persistirmos nessa aparentemente difícil escolha de confiar mais nos ensinamentos do que em nossos hábitos e condicionamentos, nossas habilidades de lidar com as coisas, nossa esperteza e capacidade de sedução, então nossas mentes se tornam ligadas ou fundidas com o próprio dharma. A princípio isso exige reflexões e contemplações repetidas e deliberadas. Mas, como disse o Buda, através da imitação nos tornamos condicionados ao que é real.
Isso leva ao cerne da questão. Não conheço ensinamento do Budadharma mais ignorado e rejeitado pelos budistas ocidentais do que aquele que diz que as práticas preliminares são mais profundas do que as práticas que vêm depois, as assim chamadas práticas ‘principais’. Não importa que o grande Sakya Pandita, ou Drikung Kyabgon ou outro grande mestre diga isso – nós apenas não acreditamos, ou não queremos acreditar. Achamos que eles apenas estão nos enganando, ou então que estão falando de uma maneira provisória ou direcionada para uma audiência específica, da qual não fazemos parte.
Mais cedo ou mais tarde, entretanto, quando nos avaliamos, cada um de nós tem que admitir e reconhecer que, para obter um avanço verdadeiro na redução dos estados mentais perturbados, para experimentar profunda compaixão pelos seres e para manter uma conexão não fabricada com nossa própria claridade básica, precisamos de uma forte fundação na prática. Não chegamos lá através do estudo nem por sermos apresentados a uma visão profunda que não conseguimos manter na experiência ‘ordinária’ da vida.
Ter uma sólida fundação significa que chegamos a um ponto em que, na maior parte do tempo, temos a capacidade e disposição de encarar qualquer tipo de experiência como uma oportunidade de observar, corrigir e aplicar meios hábeis. E são as preliminares comuns e incomuns que constroem esta fundação, que nos alimentam a força da lembrança que supera outras formas de condicionamento. Quando você tem esta qualidade, é justo dizer que você tem todas as bênçãos dos gurus e dos iluminados do passado, presente e futuro. Você tem, em outras palavras, tudo o que precisa para seguir no mesmo caminho para a iluminação, não importa através de quais corredores de escritório ou ruas da cidade você passar.
Aqui estão alguns dos sinais, conforme descritos nos manuais de prática de meditação, de que você está no caminho, de que você é um minisiddha em treinamento. Você vai:
• lembrar da bondade do seu guru ou de sua aspiração de bodhisattva ou de seu compromisso com a prática logo que acordar de manhã e logo antes de cair no sono de noite;
• lembrar de oferecer cada experiência agradável para os seres iluminados e dedicar o mérito deste oferecimento para o bem de todos os seres sencientes;
• sentir uma ferida suave e benéfica a cada vez que você se confrontar com o sofrimento de qualquer ser, incluindo que provém do orgulho, ciúme e raiva daquele ser, dirigidos a você;
• lembrar freqüentemente da bondade de seus professores e das maravilhosas qualidades dos ensinamentos sem nenhuma razão aparente, a ponto de ficar com lágrimas nos olhos e seu coração doer em uma maneira feliz, mas melancólica;
• não ver absolutamente nenhum problema em ser bom e tolerante;
• sentir um orgulho pelos atos bons ou generosos de completos estranhos como um orgulhos que pais sentem dos filhos, sem se preocupar com suas motivações;
• ser capaz de parar a tagarelice de sua mente focada no mundo exterior em um instante, e sem esforço permanecer em um estado de claridade e repousar, sem apego.
Não quero criar uma falsa impressão de que voltar a mente para o dharma no meio de todas as atividades é algo fácil, uma solução rápida para nossos hábitos enraizados e tendências incômodas. Mas a percepção e o entendimento crítico de que não temos outra opção são extremamente poderosos. Quando reconhecemos que precisamos construir nossa capacidade e disposição de usar tudo que acontece a nós e à nossa volta como lembrança da prática, ficamos mais próximos da percepção fundamental que é exatamente desta forma que se desenvolve a sabedoria e compaixão, e é assim que funciona o caminho.
Precisamos superar, de uma vez por todas, a ideia infantil de que a realização acontece se, e somente se, conseguirmos evitar a exposição prolongada às radiações nocivas da existência aparente, talvez em um cofre revestido de chumbo ou em uma floresta onde os pássaros não cantem muito alto, porque isto nunca vai acontecer. Os Budas não aparecem no mundo porque conseguem evitar as armadilhas por tempo suficiente para escapar para um local puro, mas porque eles têm a capacidade e aspiração de se conectarem ao mundo por uma perspectiva pura e saudável. Eles eliminam o desejo e os efeitos obscurecedores da ignorância que dá nascimento ao desejo. Eles não conseguem isto por se relacionarem com o mundo dos fenômenos de uma maneira seletiva e parcial, porque é exatamente desta forma que perpetuamos nosso ciclo de existência como seres sencientes. O caminho do minisiddha não trata de chegar a algum lugar melhor através da manipulação e controle de condições que são vazias e impermanentes, e não sujeitas a controle nem manipulação. Isto é, exatamente, o que precisamos parar de fazer.
Dito isso, é importante enfatizar a importância de aproveitar as oportunidades de prática sob condições favoráveis enquanto tentamos estabilizar nossa capacidade e disposição para trazer as condições difíceis para o caminho. Nós somos o que somos. Se pudermos conseguir tempo para fazer um retiro sério, e entendermos o objetivo de fazer o retiro, nada poderia nos ajudar mais a nos aprofundar em nós mesmos, estabelecer hábitos positivos que reforçam nossa lembrança dos pontos essenciais da prática e de como aplicá-los.
Quando eu trabalhava, anos atrás, com praticantes que entravam e saíam de retiro a cada seis meses no Gampo Abbey, de Trungpa Rinpoche, nas florestas canadenses, alguns deles pareciam traumatizados pelos efeitos alternados deste treinamento, por construírem identidades e estilos de vida e observá-los se desmoronando, vez após vez. Apesar disso, como era brilhante este sistema! Era como uma fábrica de minisiddhas, assim que os praticantes entendiam que se sentirem confortáveis no retiro não era o objetivo, e que lidarem bem com o estar de volta ao mundo não era também o objetivo.
Cada um de nós tem que se examinar com honestidade e consultar conselheiros espirituais de confiança para resolver se tem necessidade de um retiro e de que tipo de retiro precisa para construir a fundação de que necessita. Por exemplo, é mais prático e eficiente fazer centenas de milhares de prostrações e oferecimentos de mandalas em um ambiente de retiro. Mas não vamos conseguir tomar a decisão de fazer um retiro enquanto acharmos que temos mais a perder do que a ganhar com ele. Isto significa que a tarefa mais fundamental em cada etapa do caminho é trabalhar com os chamados ‘ensinamentos preliminares’ que nos dirigem, gradual mas definitivamente, em direção ao entendimento de que é o caminho da prática que proporciona o verdadeiro bem estar a nós mesmos e aos outros.
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