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Karma e motivação


O que todas as tradições espirituais têm em comum é o abandono da não virtude e o compromisso com a virtude. Todas elas dizem, de maneira semelhante, que praticar atos virtuosos leva à felicidade como resultado, enquanto cometer ações negativas resulta em sofrimento. O Budismo, em particular, dá uma descrição extensa e muito detalhada de como funcionam a virtude e a não virtude e quais são seus respectivos resultados.


Mesmo dentro do Budismo, há várias descrições disso, mas é ensinado na tradição Mahayana que o principal critério para determinar se uma ação é ou não virtuosa é se a intenção que dá origem a ela é ou não virtuosa. Se você mantém em sua mente a intenção de levar benefícios aos outros e o desejo de que eles possam vir a desfrutar da felicidade e bem estar temporários e definitivos, quaisquer ações de corpo, fala e mente que você possa realizar serão virtuosos. Mas se você agir com uma atitude mental negativa, a partir de uma motivação contaminada pelo ciúme, malícia, competitividade etc., em relação aos outros, tudo o que você fizer será não virtuoso. Em resumo, o que determina se uma ação é considerada virtuosa ou não virtuosa é principalmente a motivação ou atitude mental que a fundamenta ser positiva ou negativa. Os resultados das boas ações serão também bons, enquanto os resultados das más ações serão negativos e dolorosos.


Quando discutimos a noção de karma (ou causa e efeito), muitos pensam que ele só diz respeito a ações que foram acumuladas em vidas passadas. Em outras palavras, o karma é identificado com o que tivermos feito no passado. Entretanto, a noção de karma não é limitada somente a isso, mas abrange a acumulação de todas as boas e más ações, baseadas em motivações virtuosas ou não virtuosas, de pessoas individuais. Por exemplo, nesse momento eu estou dando uma palestra sobre o dharma. Olhando de fora, de maneira superficial, outras pessoas considerariam isso como sendo um ato virtuoso. Mas o que vemos no exterior é um mero reflexo da virtude, como uma imagem no espelho. Se isso é ou não virtude genuína depende da mente e da motivação real de quem está dando tal palestra. No meu caso, minha motivação ao falar para vocês vem do desejo de beneficiar os outros. Se eu der a palestra com tal motivação, ela vai provavelmente ser virtuosa. Da mesma forma, baseado nessa motivação, serão também possivelmente virtuosos a minha conduta física e verbal, tal como meus gestos e a maneira como eu sou visto por vocês, enquanto dou essa palestra.


No entanto, se eu não tivesse uma motivação altruísta de beneficiá-los, mas desse essa palestra baseado numa motivação contaminada por sentimentos tal como o desejo de auto-exaltação, cobiça ou malícia, ela poderia parecer algo virtuoso, mas na verdade eu não realizaria nada além de maus atos e não virtude.


Quando falamos sobre bom e mau karma, existe, é claro, o aspecto daquilo que fizemos em vidas anteriores. Entretanto, não se trata de colocarmos nossas esperanças naquilo que fizemos antes ou de tentarmos constantemente olhar para nossas vidas passadas enquanto vivemos esta vida atual, mas é da maior importância que prestemos atenção no momento presente e em todas nossas motivações neste momento, se ela são boas ou más, e se agimos de uma forma boa ou má.

O Buda ensinou: "Esse mundo é o reino do karma - o karma é acumulado neste exato momento e ele amadurece exatamente agora". De acordo com isso, em todos os momentos e agora, no presente, estamos numa situação de ter certos karmas acumulados e também de estar no processo de constantemente acumular novo karma. Baseado nesse processo, ainda experimentamos muitos resultados do karma passado, mas também muitas são as ações que cometemos no presente que, muito rapidamente, se convertem em resultados tangíveis no presente.


Por exemplo, atualmente quanto um cantor muito famoso entra no palco, muitos milhões de pessoas podem ficar muito felizes e com ótima disposição. Do ponto de vista do cantor, se sua disposição e motivação forem boas, isso vai se manifestar no seu desempenho e tudo correrá muito bem. Dessa forma, quando tanto a expressão interior quanto exterior do cantor estão de acordo, muitos milhões de pessoas na audiência ficarão em estado de euforia. No entanto, se o cantor passar por dificuldades mentais ou físicas ou por sofrimentos, isso vai se tornar uma condição que afeta negativamente seu desempenho físico e verbal, suas expressões físicas, e a demonstração de suas habilidades. Então, sentindo ou vendo isso, muitos milhões de pessoas não ficarão nem entusiasmadas nem eufóricas.


Dessa maneira, constantemente cometemos ações no presente e muitos de seus resultados vão ser experimentados como algo que pode ser visto diretamente no presente. Assim, não apenas estamos em processo de constantemente acumular karma no presente, mas também experimentando muitos resultados atuais dessas ações atuais. Se essas ações são chamadas de virtuosas ou não virtuosas depende basicamente de nossa motivação e pensamento serem bons ou maus.


Entretanto, a questão é: se realmente conseguirmos desenvolver uma boa motivação e evitar motivações negativas, podemos então parar de nos preocupar com todo o resto? De um ponto de vista isso está correto, mas de outro ponto de vista essa abordagem é duvidosa. Através do desenvolvimento de uma excelente motivação e do abandono das más motivações, podemos conseguir realizar uma boa quantidade de felicidade e bem estar, com muitos prazeres e diversões.


Entretanto, muitas serão as coisas ainda por realizar. Então o que há de errado nisso? Apenas através da prática da virtude e do abandono da não virtude, é muito difícil atingir a felicidade e bem estar duradouros e definitivos. Se não houver motivação negativa e fizermos algo com motivação positiva, de maneira geral podemos considerar essa ação como virtuosa. Apesar dessa ação representar a virtude para outras pessoas, em termos de um determinado tempo e situação pode também haver algo nela que que seja inadequado em relação a certas pessoas, tempo ou situação. Se existem aspectos inadequados nessa ação, acho que pode até acontecer que ela indiretamente se torne prejudicial para muitos seres sencientes.


Por exemplo, baseado na motivação de beneficiar os outros, eu posso construir um grande monastério que abrigue muitos departamentos para estudar e praticar o Budismo, para muitas pessoas que usarão essas instalações. Se minha motivação for pura, de uma maneira geral isso será uma atitude virtuosa. Nela própria, não existirá nada de errado. Entretanto, muitas outras pessoas têm seus próprios interesses e situações e podem ou não estar de acordo com estabelecer este monastério. Algumas vezes é possível que estabelecer grandes instalações para estudar e praticar se torne uma condição para causar problemas para muitas outras pessoas.


Dessa maneira, apesar de tal ação ser virtuosa em si mesma, pode ainda haver algum elemento prejudicial nela, e se ela for prejudicial para outros seres, isto não será uma boa coisa. A razão para isso é que precisamos reconhecer os ensinamentos do Buda como sendo caracterizados pela compaixão. Assim, se pudermos abandonar todo o prejuízo juntamente com suas bases e realizar os benefícios dos outros juntamente com suas bases, isso seria, é claro, o melhor. De outra forma, podemos terminar prejudicando outros seres com nossas ações, mesmo se nossas ações não tiverem nenhum engano de nossa parte. Se outros seres que queremos ajudar não tiverem uma motivação positiva como a nossa, algumas vezes acontece que nossas ações não servem para eles. Pelo fato de nossas ações se tornarem condições temporárias dessa forma, é possível que surjam situações prejudiciais.


Desse ponto de vista, então, nossas ações não estão realmente de acordo com os ensinamentos budistas, já que não é suficiente que a nossa motivação seja virtuosa e que tenhamos abandonado as motivações negativas, mas a questão ainda será se nossas ações são ou não prejudiciais para outros seres. Assim, é muito importante para nós abandonarmos seriamente os atos negativos e realizar atos bons em um sentido mais amplo. Não se trata apenas de ter uma motivação pura, mas precisamos considerar se colocar essa motivação em prática vai beneficiar ou prejudicar os outros. É muito importante investigar com honestidade se nossas ações envolvem elementos egoístas ou prejudiciais. De outra forma, se apenas focarmos em nossas nobres intenções sem nos preocupar muito em saber se beneficiamos ou prejudicamos outros seres ao colocá-las em prática, é muito difícil que elas se tornem o puro caminho de realizar o estado da budeidade ou felicidade e bem estar definitivos.


Por exemplo, se lidamos com alguém que tem alguns defeitos pessoais, precisamos refletir sobre se existiria uma maneira realmente benéfica para nós o aconselharmos e orientarmos de forma que ele possa entrar em um caminho reto e sem defeitos. De outra forma, se fingirmos ter uma motivação pura e considerarmos que os defeitos dessa pessoa são apenas um problema pessoal dela, isso apenas se tornará uma causa para torná-la mais raivosa e não trará um resultado benéfico para ela.


De qualquer maneira, é crucial não prejudicar os outros. Entretanto, quando refletimos sobre se, em nossa presente situação, podemos fazer alguma coisa que seja absolutamente inofensiva para outros seres, veremos que isso é muito difícil. Considere nosso sustento - para sustentar nosso corpo, precisamos de comer alimentos e também precisamos manter nossa saúde. Mas, para satisfazermos essas necessidades, muitos seres são prejudicados. Não há como remediar esses tipos de danos, desde que, como pessoas comuns, assumimos a existência contaminada dos cinco skandhas, o que constitui a verdade do sofrimento. Nesse momento, não existe realmente nada que possamos fazer para evitar esse tipo de dano que se acumula em razão da própria existência. Além da aspiração e esforço para nos livrarmos no futuro dessa existência como skandhas contaminados, é muito difícil para nós sermos capazes de fazer no presente alguma coisa que não seja prejudicial em nenhum aspecto.


Dada essa situação, existem muitas pessoas que simplesmente se tornam negligentes, mas é muito importante que tentemos, tanto quanto possível, não prejudicar os outros. Pensar que, já que não somos capazes de fazer algo que não seja prejudicial aos outros de alguma forma, devemos abandonar completamente as atividades virtuosas é algo muito pior do que não sermos capazes de evitar completamente os danos enquanto continuamos nos esforçando para chegar a poder fazer isso. Por exemplo, existe uma grande diferença entre uma semente não crescer em um campo porque não a plantamos lá, achando que esse campo não é lugar para plantar nada de qualquer maneira, e uma semente não crescer no campo apesar de a termos plantado lá pensando que ela poderia ou não crescer.


De qualquer forma, se vemos algo que não é prejudicial a partir de nossa perspectiva e podemos fazer isso, não importa se somos capazes de fazer um trabalho perfeito ou não, é crucial que façamos esforço para fazê-lo. Se fizermos esse esforço, vamos eventualmente ser capazes de fazer essas coisas com perfeição. Não há dúvidas de que muitos tipos de atividades que empreendemos em nossa vida humana para sustentar nossos corpos são prejudiciais para outros seres e que não podemos evitá-las completamente no presente. Entretanto, se nos esforçarmos para abandoná-las no futuro, vamos poder gradualmente nos descartar dos skandhas contaminados que implicam em sofrimento e prejuízos, tanto para nós mesmos quanto para os outros, e eventualmente chegará um tempo em que seremos capazes de realizar os puros skandhas e abandonar todos os tipos de ações prejudiciais a outros que sejam realizadas para sustentar nossa vida. Mesmo se formos incapazes de parar completamente de prejudicar os outros, ainda assim é absolutamente necessário que nos esforcemos para que possamos um dia conseguir não causar mais danos. Se fizermos isso, nossas atividades vão representar não apenas a realização de virtude e abandono da não virtude a partir de nossa própria perspectiva, mas vão também se tornar verdadeiramente não prejudiciais aos outros.


Em resumo, não devemos nos preocupar apenas com realizar as causas de nossa própria pureza e bem estar mas, além disso, devemos aplicar os métodos adequados para realizar as raízes da felicidade para todos os outros seres sencientes.

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