As Quatro Incomensuráveis
A atitude de um bodhisattva é querer ajudar todos os seres a encontrarem a felicidade e aliviá-los de todo seu sofrimento. O bodhisattva não acredita que existam alguns seres que desejam a felicidade e outros não. O bodhisattva não pensa que existem alguns que necessitam ser livres do sofrimento e outro que não precisam se livrar do sofrimento. Ele ou ela percebe que absolutamente todos precisam de ajuda para atingir a felicidade e todos os seres necessitam serem libertos do sofrimento. Portanto a preocupação é por cada um dos seres. Em seus comentários, Patrul Rinpoche enfatizou a necessidade de se meditar sobre a equanimidade logo no início da prática budista.
Normalmente, meditamos sobre as quatro incomensuráveis conforme elas aparecem nas preces, na ordem: amor ilimitado, compaixão ilimitada, alegria ilimitada e equanimidade ilimitada. Patrul Rinpoche frisava a necessidade de se meditar primeiro sobre a equanimidade, porque isso afasta o perigo de se desenvolver um amor parcial ou tendencioso, compaixão parcial ou tendenciosa. Quando começamos no caminho, existe uma tendência forte para amar mais aqueles que gostamos mais e menos aqueles que não gostamos. Uma vez que tenhamos desenvolvido sabedoria com essa meditação, o amor torna-se puro, se importa por cada pessoa sem nenhuma distinção. Essa é a compaixão mais pura porque se interessa por todo mundo.
Meditamos primeiro para cultivar equanimidade e então, seguimos adiante para meditar sobre o amor grandioso, e então sobre a compaixão grandiosa e finalmente sobre bodhicitta. A primeira incomensurável, equanimidade, significa não ser influenciado pelo apego ou aversão. Amor grandioso é desejar que todo mundo obtenha a felicidade.
Compaixão grandiosa significa desejar que todo mundo seja livre do sofrimento. Bodhicitta, contudo, é mais sutil por ser o desejo de atingir a budeidade para beneficiar todos os seres. Sua própria natureza é uma mente amável e compassiva.
O que a faz sutil, é que a bodhicitta implica o desenvolvimento da sabedoria (skt. prajña). Sem essa sabedoria, o amor e a compaixão de um bodhisattva se tornam um amor incompleto e uma sabedoria incompleta. Com esse amor incompleto, a pessoa pode realmente querer ajudar os outros, mas pode ser ineficiente e pode inclusive causar mal à pessoa que deseja ajudar. Com uma compaixão incompleta a pessoa pode realmente querer aliviar o sofrimento dos outros e contudo, não possui a habilidade para livrá-los de seus sofrimentos. Então, no desenvolvimento da bodhicitta, é vital desenvolver a própria sabedoria e entendimento junto com o amor e a compaixão. Esse é o significado verdadeiro da bodhicitta, e por isso é sutil e difícil de se cultivar.
Por exemplo, suponha que houvesse alguém que estivesse com muita fome e não possuímos sabedoria suficiente, podemos pensar, "Ah, existe uma solução simples, posso ensiná-lo a pescar." O ensinamos a pescar e então, em um curto prazo, a fome dele é aliviada e ele pode cuidar de si mesmo. Contudo, nós o ensinamos como prejudicar outros seres, e essa ação irá criar karma negativo, o qual irá trazer nada mais além de problemas e dificuldades para a pessoa no futuro. Portanto, embora nossa motivação fosse boa e exercitamos a compaixão, por conta de nossa ignorância, não o ajudamos em nada, mas pioramos a situação. Em outras palavras, precisamos agir com amor e compaixão, de uma maneira que sempre traga o bem à todos os seres e levar em consideração as implicações futuras do ato. Essa é a sabedoria de um bodhisattva.
Outra maneira que agir de um lugar de amor e compaixão é não prejudicar os outros. Esse é bom em um curto prazo, mas não resulta em benefícios duradouros. Por exemplo, podemos presentear uma pessoa pobre com comida e roupas. Embora a motivação seja boa e não prejudique ninguém, existe, relativamente, pouco benefício uma vez que a comida ou a roupa são usadas, o problema volta. O que o bodhisattva almeja é por um benefício enorme e duradouro. Então, quando um bodhisattva ajuda alguém, ele ou ela tenta sempre dar àquela pessoa o melhor, que é estabelece-la no melhor caminho. Se temos a possibilidade de mostrar à alguém como adentrar no supremo caminho, então o benefício é enorme e irá incrementar não apenas momentaneamente, mas ao longo de todo o tempo. Isso não prejudica os outros e ajuda a pessoa a desenvolver-se em todos os aspectos. Então o amor, compaixão e cuidado que o bodhisattva possui, leva todos ao caminho supremo, e é isso que queremos dizer com amor verdadeiro, compaixão e atividade do bodhisattva.
A motivação pura do bodhisattva é extremamente poderosa e habilidosa. Por exemplo, o comunismo também possui uma visão ou filosofia, mas para que essa fiolosofia se espalhe, envolve muitos exércitos, vastas quantias de riqueza, e uma grande quantidade de brigas e violência. Mesmo todos aqueles exércitos e equipamentos militares não convenceram mesmo as pessoas da verdade do comunismo. Em contrapartida, o Buddha não gastou milhões para propagar suas ideias ou contratou vastos exércitos com armas sofisticadas para convencer as pessoas da validade do que ele falava. Ele possuiu apenas uma tigela de medicância e uma ideia. Por causa de sua motivação pura e poderosa, suas ideias atingiram milhões e milhões de pessoas e seus ensinamentos continuam se espalhando. Quanto o Buddha ensinou o dharma, ele o fez com grande amor por todo mundo e sem nenhum tipo de parcialidade. Ele o fez sem desejar prejudicar um único ser senciente. Ele o fez com uma puríssima compaixão e sabedoria. Depois de 2,500 anos todos os seus ensinamentos estão ainda perfeitamente intactos e ainda se espalham, atingindo outros sem nenhum esforço pela parte do Buddha , demostrando o poder de sua pura motivação
A motivação de um bodhisattva do Mahayana é vasta, tem longo alcance e é extremamente poderosa. De todas as coisas que o indivíduo tenta despertar no caminho Mahayana, esta motivação realmente é a chave. Desde o começo, o indivíduo tenta desenvolver esta atitude muito vasta e poderosa, onde ele desenvolve amor e compaixão juntamente com a sabedoria que é imparcial e um interesse genuíno de libertar todo mundo do sofrimento. Essa abordagem é o cerne da bodhichitta, a força motriz ou a motivação. Oposto a isso é possuir uma mente parcial e uma atitude egoísta que envenena o ambiente.
Por outro lado, bodhicitta é muito benéfica para si mesmo e para todos os outros. Portanto, quando alguém possui bodhicitta, o que quer que ele ou ela faça, é como um remédio ou um néctar curador (skt. amrita) que traz calma, paz e tranquilidade discutidas anteriormente. É muitíssimo benéfica e atua como um poderoso remédio. Simplesmente brota de forma espontânea e natural da presença da bodhicitta que a pessoa possui. Considere o exemplo supremo de bodhicitta: quando o Buddha ensinou, ele levou uma vida muito simples e tudo aconteceu espontaneamente ao seu redor. Esses efeitos de longo alcance foram um fluxo completamente natural desse efeito terapêutico e curativo, brotando da puríssima motivação que ele possuía. Isso é muito especial.
Se olharmos por exemplo a Igreja Católica, pode-se perceber que é uma organização muito poderosa e um grande esforço é direcionado para espalhar a doutrina como um negócio organizado. Existem missionários e um esforço definitivo para espalhara a filosofia e a visão. Embora haja todo esse esforço e organização, necessariamente isso não difunde a visão do catolicismo. Com o dharma budista, ao contrário, existe o radiância natural da bodhicitta e a atividade do Buddha, que através de sua mente muito pura, permite que o dharma e seu significado se propaguem de uma pessoa para outra de uma forma muito espontânea e natural.
As duas características principais da atividade do Buddha são sua espontaneidade e sua eternidade. Pode-se ver como várias culturas do passado, como a civilização grega, influenciaram o mundo e é possível notar o quanto essa influência durou pouco. Porém, a atividade do Buddha está se espalhando e incrementando o tempo todo, sem nenhuma pausa em continuidade e é sempre efetiva, aonde quer que seja. A atividade do Buddha é também sempre apropriada e atual. Nos primeiros séculos depois do falecimento do Buddha, as atividades dele eram muito adequadas. Mesmo 2.000 anos depois, ainda são muito significativas e apropriadas.
A visão ou abordagem do bodhisattva nos ensinamento Mahayana é ancorada no segundo giro da roda do dharma. Essa segunda fase principal dos ensinamentos do Buddha são chamados de "segundo giro" ou, as vezes, "giro intermediário." O primeiro giro está relacionado com as Quatro Nobre Verdades e serve de base para o Hinayana. O segundo giro, é a base principal para o Mahayana. O principal tópico dos ensinamentos do Buddha nesse giro é o que é chamado de vacuidade. O Buddha descreveu a natureza vazia de ambos os fenômenos externos do universo quanto os fenômenos internos na mente do percebedor. E então, subsequentemente, no terceiro giro, o Buddha ensinou principalmente sobre sabedoria (skt. jñana).
As Seis Paramitas
A prática do bodhisattva Mahayana está principalmente preocupada com as seis paramitas. Existem de fato dez paramitas, porém fala-se mais sobre seis delas. Portanto, iremos discutir as seis paramitas que constituem a prática de um bodhisattva.
O Buddha disse que quando praticamos o dharma, deve ser feito de uma maneira genuína e sincera. Isso significa que, quando praticamos o dharma, não devemos apenas fazê-lo como uma exibição, pretensão ou como uma performance teatral onde os atores de fantasiam de reis e ministros, mesmo que não o sejam. Devemos praticar o dharma sinceramente e muito adequadamente com nosso corpo, fala e mente. Quando fazemos ações virtuosas com nosso corpo, nossa mente deveria também trabalhar pelo dharma.
Quando dizemos coisas, nossa mente deveria querer dizer isso também. Praticar o dharma sinceramente é muito importante. Se fazemos prosternações, por exemplo, nossa mente deveria estar repleta de fé, devoção e confiança para fazer aquelas prosternações significativas. Mas, se apenas prosternamos com nosso corpo e a mente não está envolvida com isso, então é mais parecido com um teatro onde nós apenas fazemos os movimentos, mas a potência não está lá. É o mesmo quando recitamos mantras. Se recitamos um mantra e ao mesmo tempo nossa mente está visualizando, estamos repletos de certeza, confiança e fé; então todo o potencial de nossa mente estará presente e será uma ótima prática. Mas se recitamos mantras e nossa mente está em outro lugar, então é uma exibição e o potencial não está lá. Não necessariamente é um coisa ruim apenas fazer as prosternações ou pronunciar as palavras. Significa apenas que o potencial não está presente; da mesma maneira que não é necessariamente ruim que as pessoas finjam ser reis ou ministros no teatro. Portanto, se realmente queremos ter o melhor resultado possível da nossa prática, devemos fazê-la de forma muito sincera e total com nosso corpo, fala e mente.
Com essa abordagem sem reservas, a prática do bodhisattva é a das seis paramitas.
A primeira é generosidade, que significa dar. Existe a doação para aqueles que estão piores do que você, como os pobres, necessitados e famintos. Tem a doação àqueles que estão melhores do que você, o que significa oferecer para às três jóias. Essas são as duas áreas principais da generosidade de um bodhisattva. Ao dar para aqueles que estão na pior, o que é importante é a compaixão e quando doar para aqueles que estão melhores, o que é importante é a fé, devoção e confiança.
Dessa forma, quando se dá para os pobres, você alivia a pobreza e fome temporariamente devido à compaixão. Quando se faz oferendas às três jóias, é como uma expressão de devoção. Se a pessoa nunca doa para aqueles que estão em um estado pior, então a compaixão não está presente e não é completa. Da mesma maneira, se a pessoa não faz oferendas para as três jóias, então a fé, confiança e apreciação da pessoa em relação às três jóias não está muito certa. Portanto, oferendas são um sinal muito importante de como as coisas estão indo em termos de compaixão e devoção. Além de cultivar amor, compaixão e devoção, o bodhisattva tem também que de fato praticar a paramita da generosidade.
A segunda paramita é a conduta virtuosa. A essência mesma da conduta virtuosa é que através do amor e compaixão, não se causa mal a nenhum outro ser. Se a pessoa possui amor e compaixão e ainda assim prejudica outros seres, é uma sinal de que esse amor e compaixão não estão de fato presentes. Então, se alguém é amável e compassivo, deve de fato nunca prejudicar outros seres. Essa é a abordagem do bodhisattva para o amor e compaixão. Por isso, a conduta virtuosa está principalmente preocupada com a disciplina de se praticar a conduta correta com o próprio corpo e fala, de forma que não faça mal a outros diretamente ou indiretamente.
Generosidade e conduta virtuosa dependem principalmente da pessoa. Se é feito um esforço para ser amável e compassivo, é relativamente fácil desenvolver a generosidade. Também, se a pessoa é amável e compassiva, é relativamente fácil manter uma elevada conduta moral uma vez que isso depende principalmente de se trabalhar consigo mesmo.
A terceira paramita lida com uma coisa mais difícil. Lida em como reagimos à situações que surgem dos outros, particularmente do que fazemos ao nos defrontar com agressões físicas e verbais vindas de outros. Essa é a paramita da tolerância, comumente chamada de paramita da paciência, que é permanecer no amor e compaixão diante de uma agressão. O treino da paciência é o treinamento de manter seu amor e compaixão ao encarar uma dificuldade que advém de uma outra pessoa. Portanto, se seu amor e compaixão são incrivelmente estáveis, quando outros nos atingem, não importa o quanto nos machucam fisicamente, nunca respondemos da mesma maneira. A nossa única resposta é aquela do amor, compaixão e entendimento.
Para praticar a generosidade, conduta virtuosa e paciência diante das dificuldades, a pessoa necessita da quarta paramita, diligência, para implementar as três primeiras paramitas e fazê-las aumentarem se tornarem-se fatores mais poderosos na sua vida.
Diligência significa praticar sem cair sob a influência da preguiça e praticar porque a pessoa percebe o grande valor dessa prática. Uma vez que se obteve um entendimento profundo desse valor, naturalmente haverá alegria e entusiasmo para continuar. Então, automaticamente, a pessoa colocará muito esforço para fazer com que se torne uma coisa bem produtiva. A pessoa se tornará diligente, incrementando dessa forma as paramitas anteriores.
A quinta paramita é a estabilidade mental. A palavra tibetana para esta paramita é "gom", a qual é a palavra para "meditar". Essa é uma palavra ativa e deriva da raiz (tib. khom) que significa "se acostumar com algo". Assim, meditar significa se comprometer e se habituar com a meditação. Isso realmente significa treinar para assentar a mente. Embora dizemos "minha mente", a mente que nos pertence não está sob nosso controle. Porque nós não a treinamos muito, nossa mente tende a ser muito distraída; pula de uma coisa para outra o tempo todo. Por exemplo, podemos decidir, "eu não vou mais ficar com raiva". Mesmo que tenhamos decidido isso em algum momento, não temos controle sobre a nossa mente e assim posteriormente caímos sob a influência da raiva. Nós podemos prometer não estar mais sujeitos aos desejo e então perder o controle e nossa mente ficar de uma hora para outra repleta de desejos.
Assim, pensamos "minha mente está sob meu controle", mas quando a olhamos cuidadosamente não há tanto controle assim. Não é como a nossa mão, se quisermos que nossa mão vá a algum lugar, a colocamos lá. Se quisermos que ela volte, nós a trazemos de volta. Mas a mente não é nem de perto tão domada e não responde a esses comando tão bem. Isso acontece principalmente porque nós não temos feito realmente muito esforço em colocá-la sob controle. A palavra "meditação", tem essa implicação de treinar ou habituar a nossa mente de forma que ela faça o que queremos. Nós habituamos nossa mente pela meditação repetidamente. Essa é a natureza da meditação e o ponto central da quinta paramita, estabilidade mental.
A sexta paramita é sabedoria ou prajña em sânscrito. O quanto de felicidade obtemos das coisas mundanas depende do tanto de entendimento e sabedoria que possuímos. Assim, sabedoria é a raiz da felicidade e alegria, e determina o valor de todas as outras coisas. No sentido último, o benefício que podemos obter depende muito de nossa sabedoria e entendimento. Da mesma maneira, a habilidade de ajudar os outros depende do grau de nossa sabedoria. Nosso desenvolvimento também depende do grau no qual cultivamos sabedoria. Por todas essas razões, sabedoria e entendimento são a raiz da felicidade e delas é que brota a alegria. Como fazer então para cultivar essa sabedoria? Para um budista, ela é cultivada pelas três principais abordagens de estudar, contemplar e meditar.
Trecho do livro "The Three Vehicles of Buddhist Practice", de Thrangu Rinpoche.
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